Por mais que estudiosos se interessem e jornalistas acompanhem as circunstâncias da colonização palestina do último século, há antes disso uma história que recolhemos aos pedaços, buscando separar o que é mito – que se mistura com a narrativa bíblica judaico-cristã. São resgates de historiadores, arqueólogos e da memória cultural de um povo que resiste à limpeza étnica. Nenhum pesquisador, entretanto, foi tão longe e com tanta acuidade como fez Nur Masalha no livro “Palestina – Quatro mil anos de história”.
O autor busca na passagem desses milênios as referências a uma Palestina e uma terra assim chamada e sua interação histórica no Crescente Fértil com a civilização.
Os primeiros registros vão a 4 mil anos, ao longo do primeiro período da Idade do Bronze, quando ocorria a urbanização da Palestina , com a formação de grandes centros urbanos, com palácios e fortificações, acompanhada pelo surgimento de um alfabeto semita.
Nur Masalha desmistifica a ideia de grupos tribais de então, e cita alguns centros que estariam nas cidades de Jericó, Gaza, Tell al-Ajjul, Tell al-Sakan, Tell al-Tell, Jerusalém, Tell Dothan, Tell Taannek e Tell al-Mutasallim – este último, o sítio arqueológico da poderosa cidade-estado de Megido.
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“Talvez nenhum outro estudo tenha coletado tantas evidências não só da presença contínua de população na Palestina, desde o surgimento da civilização, mas também da centralidade dessa região e de seus habitantes no curso da história”, diz o prefaciador Salem Nasser.
Nur Masalha afirma que a Palestina como conceito representa uma unidade nacional e geopolítica com raízes profundas na história. O nome Palestina é sobretudo utilizado a partir do colapso da Idade do Bronze – isto é, de 1.300 a.C. em diante. Está presente em incontáveis histórias, inscrições abássidas, mapas islâmicos – incluindo mapas-múndi do início da Antiguidade Clássica –, moedas filisteias da Idade do Ferro e da Antiguidade, além de abundantes quantidades de moedas abássidas e omíadas com nome Filastin.
A partir dos primeiros registros desenrolam-se achados de uma história que legou símbolos e patrimônios culturais à humanidade. Legou também indicadores que atravessaram períodos do contato e incorporação de culturas e mas que foram em grande medida descaracterizados no século passado pelo esforço de judaização da memória, lugares, nomenclaturas palestinas.
No entanto, como diz o autor, a evolução cronológica da Palestina como país e entidade político-geográfica distinta tem raízes profundas na consciência e psiquê local.
É inimaginável o peso da identidade relacionada a um nome encontrado por 3.300 anos ao longo da Antiguidade. Foi adotado para referir à mesma Palestina por assírios, egípcios, autores gregos e romanos, por cristãos bizantinos e árabes medievais. Consta de inscrições, histórias, mapas-múndi, relatos eclesiásticos, crônicas, cartas, moedas e enciclopédias . Variou em idiomas europeus e semitas como Peleset, Palashtu, Pilistu, Παλαιστίνη, Палестины, ,(ּפְ לִ ׁשְ ּתִ ים) Plishtim ,)فلسطني) Filastin ,Philistia ,Palaestina ,Palaistinē פלשתינה e פלסטין. Foi grafado como Bilishti, Pilishte, Palashtu, Pilishtu, Pilistu, Pilisti, Pilistin; Palaistinê e Palaestina ao longo dos períodos antigos, medievais e modernos por toda a região, com pronúncias parecidas nos vários idiomas..
Heródoto, no século V a.C., descrevia a nação multirreligiosa situada entre a Fenícia e o Egito sob o termo Palaistinê (Παλαιστίνη). As descobertas arqueológicas de hoje confirmam o relato de Heródoto de uma Palestina politeísta e contradizem narrativas grandiosas do Velho Testamento.
O idioma árabe, já no domínio islâmico, incorporou as variantes grega e latina grega e latina do nome Palestina (Palaistinê e Palaestina) na forma de Filastin, e a província palestina recebeu o nome de Jund Filastin, dentro da grande região de Al-Sham, que também incluia a província islâmica de Damasco, da Síria e territórios do Líbano, da Jordânia e Sul da Turquia.
Na diversidade histórica das experiências administrativas da terra palestina o historiador afirma ainda que foram os cristãos bizantinos – não os pagãos romanos – que, na Antiguidade Tardia, criaram as províncias administrativas da Palaestina Prima e Palaestina Secunda. E que a província árabe-islâmica de Jund Filastin compreendia ambas as provincias bizantinas de Palaestina Prima e Palaestina Salutaris (ou Palestina Terceira), nas partes sul e sudeste.
Testemunhos da história dos processos de urbanização grego, romano e bizantino e planejamento urbano foram preservados pelo domínio islâmico, atravessaram a Idade Média e se revelam “ ainda hoje na Cidade Velha de Jerusalém, cuja arquitetura e planejamento encontram-se entre as mais preservadas cidades medievais de todo o mundo.”
Não há, por outro lado, achados arqueológicos de um Israel Antigo. Considerada um grupo de fé no tempo de Maimônides, passou a ganhar conotações raciais sob impacto das teorias raciais europeias e do darwinismo social do século XIX. “Ser judeu se transformou então em uma identidade racial. Esse viés de raça para referir-se aos judeus perseverou até o Holocausto nazista. Na era posterior ao Holocausto, após os horrores do nazismo, ser judeu foi reinventado novamente a uma única etnia. Atualmente, árabes judeus do Iraque, Marrocos e Iêmen, judeus falashas da Etiópia, falantes do idioma amárico, e judeus russos, alemães e poloneses são tratados como uma única etnia – se não uma única raça – pelo regime sionista de Israel.
Marsalha argumenta que a lenda da conquista dos “israelitas” das terras de Canaã e outras narrativas fundacionais do Velho Testamento – ou “Bíblia Hebraica” – são mitos projetados para estabelecer uma falsa consciência, ao invés de uma historiografia baseada em evidências.
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Masalha não deixa de citar o arrasador artigo do arqueólogo israelense Zeev Herzog , professor da Universidade de Tel Aviv e diretor do Instituto de Arqueologia, publicado pelo Haaretz semanal, sob o título “Desconstruindo as muralhas de Jericó”:
“Após sete décadas de escavações intensivas na Terra de
Israel, arqueólogos descobriram que: os atos dos patriarcas são
lendas, os israelitas não se estabeleceram no Egito, tampouco
realizaram um êxodo ou conquistaram o território. Não há
também qualquer menção do império de Davi ou Salomão
ou de alguma fonte para a crença no Deus de Israel. Tais fatos
são conhecidos há anos, mas Israel é teimoso e ninguém quer
ouvir falar disso. (Herzog, 1999: 6-8)”
Uma resenha não define o livro monumental que vai além da Antiguidade clássica e do Helenismo, a Palestina cristã, a transformação em Palestina islâmica, o Império Otomano, o Estado palestino no século XVIII e, então o colonianismo britânico, a expropriação e a judaização da memória.
Das três categorias das escritas sobre a Palestina que Nur Marsalha define como (1) escritas coloniais israelenses com base nas escrituras e sua geografia; (2) discursos de “novas historiografias” de Israel, nas quais a história milenar da Palestina é tratada como mero apêndice de Israel moderno; e (3) a “história de baixo”,de acadêmicos nativos e anticoloniais, como Edward Said e Frantz Fanon, que tratam dos colonizados e colonizadores, o autor assegura que seu trabalho está, na Terceira. Prioriza dar à Palestina e sua população uma voz própria para falar por si.
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