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Soldados israelenses em Gaza ostentam má conduta

Caso da Bósnia determina: Israel deve ser condenado por crime de genocídio

Protesto pró-Palestina em Chicago, EUA, 31 de dezembro de 2023 [Jacek Boczarski/Agência Anadolu]

Se partirmos da análise de Hegel que todos os grandes eventos e indivíduos históricos estão fadados a repetir-se — “primeiro como tragédia, então como farsa” —, parece que o regime israelense está comprometido em prover ambos à arena geopolítica global.

O Holocausto contra os judeus na Europa motivou a criação da Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio. De raízes judaicas, o jurista polaco-americano Raphael Lemkin, um dos redatores do tratado, tornou-se conhecido por cunhar o termo “genocídio”.

Setenta e cinco anos depois, Israel — autoproclamado Estado judeu — é quem está prestes a sentar no banco dos réus pelo crime de genocídio. Tel Aviv deve produzir sua defesa nesta quinta e sexta-feira, 11 e 12 de janeiro, diante do Tribunal Internacional de Justiça, sediado em Haia, após uma denúncia da África do Sul de que comete genocídio contra os palestinos na Faixa de Gaza.

Será este um escárnio da justa proclamação de “nunca mais”, após o Holocausto nazista? Ou será o exato oposto do que o mundo prometeu aprender com a catástrofe enfrentada pelos judeus na Segunda Guerra Mundial?

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Lamentavelmente, não é a primeira vez que “nunca mais” parece uma frase com significado minguante. Sérvio-bósnios liderados por Radovan Karadzic e Ratko Mladic cometeram atos de genocídio contra os bosníacos muçulmanos entre 1992 e 1995, na região dos Balcãs. É um paradoxo que os sérvios foram fatalmente vítimas de perseguição e extermínio por parte do Estado Independente da Croácia, estabelecido em 1941 em apoio a Adolf Hitler e Benito Mussolini.

Os criminosos Karadzic e Mladic e seus diversos colaboradores foram considerados culpados pelo crime de genocídio diante do Tribunal Internacional para Crimes de Guerra no Território da Ex-Iugoslávia (ICTY), entre outras cortes nacionais e internacionais. Ao julgá-los, o mundo conquistou uma oportunidade extraordinária de aprender uma lição sobre o “crime de todos os crimes” cometido na Bósnia, para punir seus responsáveis e impedir a reincidência.

Contudo, o caso da Bósnia foi além, ao chegar ao Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), que deve deliberar pela primeira vez nesta semana sobre as inúmeras denúncias de que Israel conduz crime de genícidio contra os palestinos nativos dos territórios ocupados.

Em fevereiro de 2007, após uma moção da Bósnia e Herzegovina, o TIJ considerou a Sérvia como culpada por violar a Convenção sobre Genocídio, ao falhar em prevenir o massacre de  Srebrenica, punir seus perpetradores ou sequer extraditá-los a Haia. A ocasião inaugurou a corte para julgar um país acusado de violar o tratado das Nações Unidas. Entretanto, apesar de extensas evidências e sob circunstâncias políticas inexplicáveis, a Sérvia não foi designada diretamente culpada pelas políticas de extermínio contra o povo bósnio.

Como aconteceu no caso da Bósnia, devemos esperar outra maratona e jogos de poder nas audiências sobre Israel, dado o impacto em potencial sobre o sistema internacional, a partir das denúncias emitidas pela África do Sul em 29 de dezembro de 2023. De fato, uma decisão favorável ao povo palestino seria um impulso sem igual à credibilidade da lei internacional.

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Caso medidas cautelares sejam adotadas, Israel será compelido a cessar sua ofensiva militar contra a Faixa de Gaza, cujas baixas palestinas excedem 23 mil mortos e se aproximam de 60 mil feridos — na maioria, mulheres e crianças. Os ataques israelenses não pouparam casas, hospitais, escolas, locais de culto ou instalações humanitárias, destruindo a maior parte da infraestrutura civil do território. A mesma coisa ocorreu em Sarajevo em 1992 e Mostar em 1993, quando tropas croatas demoliram, entre outros monumentos, a célebre Ponte Velha, símbolo centenário da arquitetura otomana. A prática, denominada memoricídio, a fim de destruir os traços culturais de um povo, ocorre hoje, na terceira década do século XXI.

Francis Boyle — primeiro representante da Bósnia e Herzegovina no TIJ e um dos advogados mais notórios dos Estados Unidos, com quem conversei recentemente — crê que a África do Sul tem chances concretas de vencer o caso contra Israel. Com base em seu “conhecimento, juízo e experiência”, Boyle chegou a predizer no popular programa americano “Democracy Now!” que a África do Sul terá êxito em obter da corte um mandado para que Israel “cesse e desista de todos os atos de genocídio contra os palestinos”. Ao referir-se a sua experiência junto à Bósnia e Herzegovina, Boyle sugeriu que um mandado pode ser emitido tão logo quanto uma semana depois das audiências de 11 e 12 de janeiro.

Caso ocorra, toda a comunidade internacional se verá de um desafio prático: interromper na prática o genocídio em Gaza após mais de três meses, ao aplicar a decisão, e assegurar, em último caso, que os criminosos no governo e no exército de Israel enfrentem a justiça.

Quem são eles? Aqueles que descreveram os palestinos de Gaza como “animais humanos”. Aqueles que caçoaram de suas vítimas, como os nazistas fizeram contra a dignidade do povo judeu na Europa. Aqueles que impuseram “condições de vida calculadas para causar danos físicos” ao povo palestino. Aqueles que negaram sistematicamente os residentes “isolados e sitiados” de Gaza de obter sequer acesso a água, comida, energia elétrica, remédios, abrigo e outros bens essenciais. Aqueles que assinam as bombas lançadas indiscriminadamente há semanas. Aqueles que expulsaram à força cerca de dois milhões de pessoas de suas casas, ou 85% da população. Aqueles que proclamaram seu intuito de expulsar as massas carentes a uma área ínfima na fronteira com o Sinai, sem sequer teto para proteger-se do inverno.

A experiência bósnia é um caso importante para a contemporaneidade; é importante saber que não pode haver paz sem justiça. Sem assumir a responsabilidade perante as ditas faces do mundo civilizado, é impossível dar fim a ideologias e discursos que consideram legítimo assassinar crianças e idosos, destruir suas casas e expulsá-los de suas terras. Toda e qualquer concessão a ideólogos assim somente engendrará mais conflitos e mais injustiça. Sem justiça não há catarse a ninguém, muito menos aqueles que compreendem que o regime criminoso de Benjamin Netanyahu levou até mesmo os israelenses à beira do abismo, como escreveu Ihsan Aktas ao Daily Sabah.

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Na ocasião do 20° aniversário do genocídio em Srebrenica, Richard Goldstone — advogado sul-africano e primeiro promotor da corte penal para a ex-Iugoslávia — declarou: “É crucial às vítimas, a todos os povos … e, em último caso, a todo o mundo, que pensem sobre seu dever moral para apoiar todas as iniciativas para que criminosos de guerra sejam levados à justiça e assegurar que o genocídio cometido jamais aconteça novamente”.

É por isso que o caso iniciado pela República da África do Sul, com apoio da Turquia, Bolívia e outros países, é considerado uma “chance de ouro” para salvar quem sabe o planeta. Se o Tribunal Internacional de Justiça indeferir os argumentos óbvios de que Israel comete crime de genocídio em Gaza, caso se ajoelhe diante de Estados Unidos e aliados europeus, dará luz verde para mais e mais horrores ainda porvir. Quem sabe ainda piores do que os horrores impostos aos palestinos de Gaza desde outubro.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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