O retorno de Karma à Faixa de Gaza em julho último, para passar somente um mês, deveria ser uma surpresa agradável a seu pai após anos e anos de saudade. Karma jamais saberia que sua visita se tornaria mais tarde em um triste adeus a paisagens conhecidas, memórias afetuosas e entes queridos de seu passado.
“Honestamente, não consigo descrever muito bem o que sinto agora”, relatou Karma. “É uma mistura de todos os mais terríveis sentimentos e me pego constantemente na esperança de que seja apenas um pesadelo, que infelizmente nunca é. A guerra é nossa realidade”.
À medida que Israel intensificou seus bombardeios e operações por terra em Gaza, a rotina de contactar seu pai se tornou um ritual agonizante, com cerca de 50 telefonemas e mensagens de texto a cada dia. Cada resposta trazia um breve consolo de que ainda estava vivo.
Gaza sofreu sucessivos blecautes nos serviços de internet e telefonia devido a bombardeios de Israel à infraestrutura civil, além de cortes de toda a energia elétrica desde 7 de outubro.
Desde então, Karma sofre de uma enxaqueca que não vai embora. Tudo que consegue pensar é no que pode acontecer a sua família. Acorda todas as noites, em busca de notícias na televisão ou nas redes sociais, esperando jamais encontrar, contudo, retratos ou nomes de seus parentes.
Karma Eleiwa, hoje com 21 anos, cresceu em Gaza, mas deixou sua terra em 2019, para estudar na Jordânia. Em seguida, mudou-se a trabalho para Dubai.
“Tento ligar e mandar mensagem ao menos 50 vezes por dia. Sempre que possível, meu pai nos dizia que estava vivo e bem, muito embora não estivesse tão bem. É assim, eles tentam parecer fortes para que possamos ficar fortes também”, observou Karma. “Também não temos notícias de meu primo, Saleh, desde que foi sequestrado. É tudo insuportável”.
O dr. Saleh Eleiwa esteve entre os profissionais de saúde alvejados por Israel no Hospital al-Shifa — maior complexo médico do território sitiado —, apreendido arbitrariamente e desaparecido desde então.
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Entre os pacientes, estava sua prima, Dalia, única sobrevivente de sua família imediata após um bombardeio israelenses atingir sua casa. Antes da tragédia, o dr. Saleh tratava a mãe de Dalia na ala de obstetrícia do Hospital al-Shifa.
“‘Antes dos soldados o capturarem”, prosseguiu Karma, “ele nos dizia quão difícil era a situação que tinha de enfrentar, com tão pouca comida e água. Não havia onde dormir. Era preciso ir ao porão e se deitar no chão para descansar um pouco”.
Chuveiros não estavam funcionando, devido ao corte no abastecimento de água instaurado por Israel. Os médicos mal conseguiam lavar as mãos. Karma compartilhou ainda como o dr. Saleh teve de sacrificar suas próprias refeições para que seus pacientes se recuperassem.
Quando as forças israelenses invadiram o hospital, todos temeram por suas vidas. No entanto, nenhum dos médicos quis abandonar seus pacientes, ao preferir ficar diante do perigo.
Ataques aéreos israelenses alvejaram absolutamente todos os hospitais de Gaza, em uma clara violação da lei internacional, que estabelece a proteção incondicional da infraestrutura civil em tempos de guerra, sobretudo escolas, hospitais, clínicas e abrigos.
O Hospital al-Shifa sofreu sucessivas invasões, sob a alegação israelense de que combatentes do Hamas usavam o local como centro de comando. Desde sua destruição, Israel, no entanto, não apresentou quaisquer evidências de túneis ou bases do Hamas debaixo do hospital. As supostas evidências apresentadas, todavia, foram refutadas como vídeos forjados de ocasiões distintas, gravados em momentos diferentes e mesmo outros países.
“Saleh somente permaneceu no hospital porque havia um número extraordinário de pacientes, sem médicos suficientes para tratá-los, além do fato de que as condições para voltar a sua casa em Shuja’iyya, em busca de sua família, eram terríveis”, explicou Karma. “Diante do perigo, eles mantinham seus documentos de identidade em mãos e esperavam ou uma comunicação direta dos soldados israelenses ou um momento oportuno para se locomover entre as alas”.
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Em 19 de novembro, forças israelenses abriram fogo contra os refugiados palestinos abrigados em al-Shifa, incluindo pessoas que estavam nas unidades de terapia intensiva (UTI). O dr. Saleh tentou deixar o hospital junto de sua prima, para voltar à casa dela no distrito de Shuja’iyya, na periferia norte da Cidade de Gaza.
No caminho, o dr. Saleh buscou abrigo em outra ala médica, sob disparos e ordens israelenses para que todo mundo deixasse o hospital. Os palestinos vieram tanques de guerra, aeronaves combatentes e franco-atiradores cercando todo o perímetro, posicionados de acordo com uma política conhecida de “atirar para matar”, sem discriminar médicos, feridos ou refugiados.
“O dia 19 de novembro foi a última vez que nossa família falou com ele. Saleh deixou Dalia em Shuja’iyya e seguiu caminho ao sul, através da estrada de Salah al-Din, para buscar sua própria família. Então foi parado por soldados junto a um grupo de pessoas”.
A estrada de Salah al-Din é a principal via que liga toda a extensão de Gaza, conectando cidades e aldeias, designada por Israel como “rota segura” aos palestinos que deixaram o norte rumo ao sul, à medida que a ocupação conduzia sua brutal varredura militar. A estrada, no entanto, logo se tornou uma verdadeira arapuca. Sobreviventes confirmam que a via está repleta de corpos e veículos carbonizados, em meio a persistentes disparos de Israel.
“Não, não teve salvo-conduto. Os soldados israelenses, ao contrário, estavam abduzindo idosos, mulheres e médicos, como o dr. Saleh. Ninguém teve notícias de Saleh por horas, até que outro médico ligou para seu cunhado, que enfim informou que soldados israelenses haviam abordado o grupo e então o sequestrado. Até hoje, seu telefone ainda toca, mas não temos pista alguma de seu paradeiro”.
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À medida que surgem vídeos de palestinos vendados sendo escoltados pelas forças israelenses, em imagens análogas aos campos de concentração ao longo da história, cresce a preocupação entre Karma e sua família de que o dr. Saleh esteja sofrendo tortura nas mãos de Israel, para se produzir uma confissão forjada de supostas atividades militares em al-Shifa.
“Ver minha terra, minha família, meu povo, mesmo a casa de meu avô, minha escola, meu café favorito, tantas memórias, sendo bombardeadas sem parar é de partir o coração”, acrescentou Karma. “Não dá para imaginar a dor de ver um genocídio contra nosso povo e não poder fazer nada para pará-lo. Parece ficar ainda pior”.
“Quero que isso acabe. Quero meu primo de volta são e salvo”.