“Palestina livre” é uma resiliente sentença que passou a definir o grito indignado de milhões de cidadãos em todo o mundo, que denunciam nas ruas o genocídio israelense em Gaza.
Estas também foram as palavras finais de um jovem soldado da Força Aérea dos Estados Unidos que ateou fogo ao próprio corpo em frente à embaixada israelense em Washington na tarde de domingo (25). Cada um de seus gritos de “Palestina livre” soou mais urgente do que o anterior, embora sufocado por seu doloroso sacrifício. À medida que chamas de protesto tomavam a vida de Aaron Bushnell, oficiais do Serviço Secreto em frente à embaixada pareciam confusos, ao lhe apontar ora armas, ora extintores de incêndio.
Bushnell sucumbiu de seus ferimentos nas primeiras horas da manhã de segunda-feira e talvez jamais saberemos toda a história de seu martírio. “Não serei mais cúmplice do genocídio”, disse o soldado, com aparente lucidez. Ao falar à câmera, Bushnell reconheceu a autoimolação como “um ato extremo de protesto”, mas “comparado ao que o povo palestino sofre nas mãos de seu colonizador, não é nada extremo”. Em seguida, conclamou: “É isto que nossa classe governante decidiu ser normal”.
As chamas foram enfim extintas por membros do Serviço Secreto — como é chamada a agência de segurança interna incumbida de proteger políticos americanos. Após o incidente, o porta-voz Joe Routh alegou que oficiais de sua divisão uniformizada responderam ao que parecia ser “um indivíduo sofrendo uma possível emergência de saúde mental”.
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Trata-se, é claro, de uma descrição conveniente do protesto dramático de Bushnell, ecoada em tom de chacota pela conta oficial do Mossad, serviço de espionagem israelense, na rede social X (antigo Twitter). No que diz respeito à dor e ao sofrimento de terceiros, Israel não tem qualquer empatia ou compaixão.
No entanto, e se considerarmos a hipótese de que o protesto de Bushnell foi mais um pedido de socorro do que um ato de desespero? Ao analisarmos a repercussão online, poderemos ver que seu sacrifício de fato ecoou ao sentimento de inúmeras pessoas que sofrem de um tipo coletivo de estresse pós-traumático devido às imagens gráficas do genocídio em Gaza, abundantemente registradas pelos próprios palestinos, cuja única esperança é que o mundo reconheça sua dor e sua humanidade. Até então, contudo, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden — apelidado pelas massas de Genocide Joe por sua cumplicidade com Israel — falhou em telefonar a Tel Aviv e pedir um cessar-fogo.
Conforme o respeitado jornalista Mehdi Hassan, Biden poderia interromper a carnificina em um instante, se assim o quisesse. Quem sabe, Bushnell — engenheiro de softwares radicado em San Antonio, no Texas — por meio de seu martírio enfim convença Biden a um pingo de empatia. No entanto, jamais saberemos, a verdadeira natureza de sua angústia, e, embora Israel se apresse em difamá-lo e escarnecer seu falecimento, expressamos condolências a sua família.
Não é a primeira vez que alguém ateou fogo a seu corpo como forma de protesto. Em dezembro, um cidadão envolto em uma bandeira palestina cometeu autoimolação em frente ao consulado israelense na cidade de Atlanta, no estado da Geórgia. O manifestante não foi identificado pelas autoridades, mas permanece em estado crítico.
A autoimolação tem uma história marcante como forma de protesto. Cidadãos árabes lembram-se bem do jovem tunisiano Mohammed Bouazizi, creditado por deflagrar a Primavera Árabe, ao atear fogo ao próprio corpo em frente à sede do governo, frustrado com a situação econômica imposta a sua família.
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Quem sabe, o incidente mais icônico de autoimolação foi do monge Quang Duc, em Saigon — hoje cidade de Ho Chi Minh —, em 11 de junho de 1963, ao denunciar a perseguição imposta a seus concidadãos budistas pelo governo do Vietnã do Sul, então alinhado aos Estados Unidos. O presidente americano John F. Kennedy reconheceu, na época, que as fotografias premiadas de Malcolm Browne sobre o monge em chamas mudaram o curso da história. “Nenhuma imagem gerou antes tamanha comoção no mundo como essa”.
Tenho esperanças de que o protesto de Bushnell não seja difamado como uma ação perpetrada por um “doente mental”, apesar dos esforços de ideólogos sionistas e da imprensa corporativa. Ao contrário, espero que traga respostas e reações, como foi no caso do martírio de Quang Duc. A reivindicação às portas da Casa Branca é apenas uma, bastante simples: “Ligue agora mesmo para Netanyahu. Acabe com a guerra”.
Que o protesto e o martírio de Aaron Bushnell não sejam em vão, presidente Biden. Quando um jovem americano, de pele caucasiana, em uniforme militar, grita em alto e bom som “Palestina livre”, à medida que a vida se esvai de seu corpo — pelo amor de Deus, pegue o telefone.
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