Em meio a alertas terríveis da ONU sobre a crise de insegurança alimentar em Gaza, os Estados Unidos proclamaram em alto e bom som que estão fornecendo ajuda humanitária ao enclave. No entanto, apesar dos comentários apaixonados do Secretário de Estado, Antony Blinken, na cúpula de Davos, sua recente visita a Israel não produziu nenhum progresso substancial no aumento do acesso dos palestinos à ajuda.
Enquanto isso, os líderes internacionais, assim como os relatores especiais da ONU, enfatizaram a gravidade da situação, com relatórios indicando que a fome generalizada é exacerbada pelo ataque de Israel ao sistema de fornecimento de alimentos em Gaza. Já vimos dezenas de crianças e mulheres morrendo de fome, enquanto as que ainda estão vivas olham com os olhos marejados para um mundo impotente que não faz nada para evitar os horrores que estão sofrendo.
Durante quase seis meses, Israel dificultou a entrega de alimentos, suprimentos médicos e outros itens de ajuda através das duas passagens de fronteira terrestre: Rafah com o Egito e Karem Abu Salem com o próprio estado ocupado. As inspeções de “segurança” israelenses impedem o fluxo de ajuda para a Faixa de Gaza, fazendo com que apenas uma fração da assistência necessária chegue a uma pequena parte da população. O bloqueio da ajuda não é uma necessidade de segurança para os israelenses, mas uma decisão estratégica. Como o membro do Knesset Tali Gottlieb explicou no parlamento em 23 de outubro: “Sem fome e sede entre a população de Gaza, não conseguiremos recrutar colaboradores, não conseguiremos recrutar a inteligência, não conseguiremos subornar as pessoas com comida, bebida e remédios para obter inteligência; sabemos que encontrar os sequestrados é um objetivo supremo e superimportante, juntamente com os objetivos da luta”.
Em resposta às crescentes críticas a Israel e seus aliados, o presidente dos EUA, Biden, anunciou seu compromisso de construir um porto flutuante para a entrega de ajuda. Os EUA também realizaram lançamentos aéreos de ajuda alimentar, um método ineficaz de entrega de ajuda que, no entanto, é fotogênico para fins de relações públicas. Alguns paletes caíram no lado israelense da fronteira nominal, outros caíram no mar e outros ainda caíram sobre pessoas famintas e as mataram. A situação continua crítica, com a fome rondando o território palestino.
No entanto, apesar desses aparentes atos de generosidade, a dinâmica subjacente revela a perpetuação de sistemas opressivos.
Ao mesmo tempo em que fornece ajuda humanitária aos palestinos por meio de lançamentos aéreos, a Força Aérea dos EUA também fornece armas e munição ao estado de ocupação. Essa situação “absurda” mantém o status quo, beneficiando o opressor e, ao mesmo tempo, aumentando a dependência de ajuda dos oprimidos. As ações dos EUA, com sua alta visibilidade na grande mídia, obscurecem a capacidade da comunidade internacional de ver a realidade em Gaza. Essa falsa generosidade ignora e obscurece a necessidade de abordar as causas fundamentais da crise – a ocupação israelense da Palestina – e garantir esforços de ajuda sustentáveis. Os EUA podem estar construindo um porto flutuante para permitir que a ajuda chegue de navio à costa em Gaza, mas também estão usando seu veto no Conselho de Segurança da ONU para bloquear os esforços de cessar-fogo e, assim, dão sinal verde para que Israel continue a bloquear a entrega de ajuda por terra, bem como sua brutal ofensiva militar.
Além disso, o porto pode ser um projeto de dupla finalidade para controlar os palestinos em Gaza, em vez de simplesmente fornecer ajuda humanitária. Pelo menos um palestino proeminente já alertou que ele pode ser usado para deslocar os palestinos de sua terra natal.
O ataque contínuo a Gaza ressaltou mais uma vez a significativa assistência militar dos EUA a Israel. A escalada de armas, munições e equipamentos despachados durante a ofensiva é impressionante, incluindo bombas, projéteis de artilharia e drones, enviados por via aérea e marítima. A ajuda financeira fornecida pelos EUA a Israel sempre foi substancial, totalizando mais de US$ 330 bilhões desde 1948, sendo que a ajuda anual à defesa atualmente ultrapassa US$ 3,8 bilhões. A recente aprovação pelo Congresso dos EUA de uma lei de ajuda externa de 95 bilhões de dólares, com uma parte significativa destinada a Israel, demonstra ainda mais o compromisso duradouro de Washington com o apoio às forças de ocupação de Israel. A recente autoimolação de Aaron Bushnell, de 25 anos, membro da Força Aérea dos EUA, do lado de fora da Embaixada de Israel em Washington, em protesto contra a cumplicidade dos EUA com o genocídio, foi um trágico lembrete da ampla ajuda militar recebida por Israel de seu principal aliado internacional.
Desde 7 de outubro, Israel tem se beneficiado do apoio político, diplomático e midiático inabalável dos Estados Unidos à sua ocupação. Ao se encontrar com o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, em Tel Aviv, Joe Biden endossou a versão de Israel sobre o ataque ao Hospital Batista Al-Ahli em Gaza, afirmando: “Parece que foi feito pela outra equipe”. O bombardeio israelense e a reação de Biden representaram um teste decisivo da reação internacional aos ataques sem precedentes de Israel à população civil e à infraestrutura de Gaza, incluindo o sistema de saúde. O governo Biden bloqueou repetidamente as resoluções de cessar-fogo em Gaza na ONU e contornou o Congresso para aumentar as vendas de armas para Israel em um esforço maciço para permitir a ofensiva massivamente destrutiva de Israel.
A ajuda humanitária dos EUA aos palestinos, portanto, oferecida à vista desse apoio de longa data a Israel e da cumplicidade de Washington com o genocídio em Gaza, é uma personificação do conceito de “falsa generosidade” do filósofo brasileiro Paulo Freire. Para Freire (1921-1997), essa “falsa generosidade” aborda os sintomas da injustiça sem confrontar suas causas básicas; de fato, no caso de Israel, talvez enquanto alimenta as causas básicas.
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A falsa generosidade ajuda o doador, não o receptor.
A decisão de Biden de fornecer ajuda humanitária aos palestinos ocorreu no momento em que ele está concorrendo à reeleição na eleição presidencial de novembro, e é percebida como um esforço para apaziguar o crescente descontentamento dentro da base do Partido Democrata em relação ao seu firme apoio à matança indiscriminada de civis por Israel e à destruição de hospitais, áreas residenciais e outras infraestruturas civis.
A verdadeira generosidade, conforme articulada por Freire, envolve abordar as desigualdades sistêmicas e os desequilíbrios de poder que sustentam a opressão. Ela exige um compromisso com o desmantelamento das estruturas que perpetuam a pobreza, a fome e o sofrimento. No entanto, a abordagem atual dos EUA, caracterizada por esforços de ajuda fragmentados e apoio militar maciço simultâneo a Israel, está muito aquém dessa visão transformadora. Trata-se de pseudofilantropia com apenas uma aparência de preocupação humanitária.
No caso dos EUA, a verdadeira generosidade implicaria um compromisso genuíno com a justiça e a libertação do povo palestino; a verdadeira generosidade implicaria em promover um cessar-fogo e esforços significativos de construção da paz. Até lá, o ciclo de falsa generosidade perpetua as próprias injustiças que alega aliviar, atendendo aos interesses dos poderosos e deixando de atender às necessidades dos oprimidos.
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