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Soldados israelenses em Gaza ostentam má conduta

De Internato a Animalia: Os melhores filmes do Oriente Médio de 2023

Com os efeitos da Gaza sobre o cinema regional, realizadores do Oriente Médio enfrentam desafios ainda maiores para encontrar apoio a seus projetos
Cerimônia de encerramento do Festival Internacional de Cinema do Mar Vermelho de 2023, em Jeddah, na Arábia Saudita, em 7 de dezembro de 2023 [Tim P. Whitby/Getty Images for The Red Sea IFF]

A sombra de 7 de outubro paira sobre o cinema do Oriente Médio, ao pôr em dúvida o próprio papel do cinema da região na ordem global, que trata sua política com cada vez mais escrutínio. Ano após ano, o cinema do Oriente Médio se vê confrontado por ameaças existenciais há muito conhecidas. Os fundos regionais são aquém do necessário e os governantes são essencialmente hostis às vozes independentes.

Recursos da Europa e acordos de streaming são indispensáveis e, embora diferentes instituições tenham expressado certo compromisso com projetos da região, o capital estrangeiro para obras politicamente desafiadoras se tornou precário pouco a pouco

O cinema independente do Oriente Médio vive, portanto, um momento de incerteza. Cada país tem seus obstáculos. Na Argélia, os recursos minguam; na Tunísia, tudo depende dos humores do governo. Irã e Turquia foram atingidos por ondas de censura e as esperanças sudanesas por um cinema emergente descarrilaram devido à guerra. O Líbano mal saiu da sombra da explosão em Beirute e a Palestina vive vulnerável pela ocupação israelense e pela timidez dos produtores europeus e suas políticas culturais. No Egito, o foco está no entretenimento comercial voltado a serviços de streaming regionais.

Contudo, no meio de tamanho turbilhão na cena independente, a Arábia Saudita emergiu como potência do cinema regional em termos de recursos e conteúdo. Com a bilheteria mais lucrativa da região e um prodigioso serviço de streaming — o Shahid, do grupo MBC —, o reino se tornou um mercado em expansão, atraindo contadores de história de cada canto da região. Até mesmo o Netflix, certa vez laureado como salvador do drama no Oriente Médio, mudou de foco a Riad. Três das produções regionais do Netflix em 2023 foram filmes sauditas.

O que o ano passado nos revelou, portanto, foi uma lacuna crescente entre cinema comercial e independente. Com recursos cada vez menores, a extinções dos produtores independentes e a incapacidade de escavar meios alternativos de investimento e de penetrar em novos mercados, o cinema independente continua a enfrentar um futuro incerto, uma realidade que não mudou desde a era pré-streamings.

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No mundo pós-7 de outubro, no entanto, a demanda por vozes livres, autênticas e engenhosas no Oriente Médio jamais foi mais urgente. Forças cumulativas — sejam ocidentais ou regionais — lutam para dar forma e mesmo domesticar os talentos locais. A resiliência dos cineastas do Oriente Médio para combater e se libertar de tais amarras é o que pode determinar o futuro de sua arte na região.

As melhores obras do Oriente Médio lançadas em 2023 são tanto um testemunho da evolução do cinema regional como lembrança de uma arte extraordinária sob risco de extinção, nas mãos de entes comerciais e políticos conservadores.

A história do cinema no Oriente Médio continua a tomar rumos inesperados. O ano de 2023 foi mais outro capítulo nesta árdua jornada.

  1. Dormitory (Internato, Nehir Tuna)

Um adolescente inocente se vê dividido entre sua escola secular de elite e o internato islâmico opressivo que seu pai, um empresário, o forçou a se alistar, nesta obra de estreia tão perceptiva e marcante do cinema turco.

O ano é 1996, um período de tensão entre secularistas tradicionais e islamitas que ascenderam ao poder. O filme é, por vezes, um estudo da disjunção de classe: uma exploração fragmentada do relacionamento entre classe e Islã político e um retrato de uma conjuntura crucial na história da Turquia moderna. Tamanho momento transformativo se caracterizou por fissuras sociais que apenas cresceram nas décadas seguintes.

Fotografo em belíssimo preto e branco, Internato é uma introspectivo romance de formação — em inglês, coming-of-age — com um tipo de política contundente, embora sutil, que raramente vemos no cinema turco dos dias de hoje.

  1. Hounds (Cães, Kamal Lazraq)

O filme de estreia de Kamal Lazraq, que se passa em Casablanca, é um suspense sombrio e um verdadeiro recorte da vida que se assemelha ao cinema clássico sul-americano, embora com um toque unicamente marroquino e um delicioso tempero de humor ácido.

Um gângster contrata um indivíduo desempregado de meia idade para sequestrar um capanga que matou seu cachorro em uma rinha de cães. Ao levar seu filho junto, ambos acidentalmente matam o bandido, uma das muitas calamidades ao acaso que forçam a dupla a desovar o corpo antes do sol nascer.

Ao compartilhar o toque provocador dos noirs subestimados de Nour Eddine Lakhmari, Cães — que venceu o Prêmio do Júri na competição “Un certain regard” de Cannes — mostra um olhar profundo sobre as entranhas do Marrocos, realizado com estilo e realismo.

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O relacionamento peculiar entre pai e filho sugere uma cisão geracional e a mudança de valores de um país cujos ideais são cada vez mais influenciados por uma economia em perpétuo abalo. Divertido e violento, Cães é uma jornada curiosa ao coração das trevas.

  1. Inshallah a Boy (Inshallah um menino, Amjad Al Rasheed)

O primeiro filme jordaniano a chegar a nossa lista é, quem sabe, a obra mais ousada do cinema do país até os dias de hoje.

A talentosa atriz palestina Mouna Hawa (Fauda) é uma viúva recente mãe de Nawal, que mente sobre sua gravidez para evitar que seu cunhado lhe tome a herança. Um retrato incisivo sobre a chauvinista lei de heranças da Jordânia, concebido como um suspense no estilo bomba-relógio, Inshallah um menino compensa o didatismo de seu terceiro ato com uma escrita robusta e uma engenhosa edição que, ao mesmo tempo, desafia com argúcia as doutrinas islâmicas e promove a autonomia sexual das mulheres da região.

Ao adotar um estilo visual que enfatiza o relacionamento claustrofóbico entre os personagens e seus arredores de confinamento, a estreia de Al Rasheed se mostra outo passo adiante à escola jordaniana de cinema ainda em construção.

  1. Goodbye Julia (Adeus Julia, Mohamed Kordofani)

No papel, a estreia de Mohamed Kordofani é a receita para um desastre: um filme feminino cuja protagonista é uma empregada sul-sudanesa escrito por um homem do norte. O resultado, não obstante, é um melodrama profundamente sensível sobre um país que não mais existe, ou um retrato de um velho Sudão devastado por racismo, desigualdade social e patriarcado.

O enredo se passa às vésperas do referendo pela independência do Sudão do Sul em 2011. Siran Riak é a empregada doméstica que dá nome ao filme — uma mulher do sul contratada por uma mulher do norte, uma ex-cantora de classe média responsável pela morte de seu ex-marido. O que começa como uma vaga jornada por redenção logo se torna um conto sensível de amizade entre mulheres de etnias distintas, ameaçada por um patriarcado comodista.

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Com um ritmo deliberadamente delicado e performances extraordinárias do dueto principal, Adeus Julia não esconde sua saudade de um Sudão unido, muito embora em nenhum momento negue a cumplicidade do norte do país na marginalização sistêmica e no racismo de sua antiga população negra subsaariana, uma cumplicidade que se estende ao próprio diretor quando era mais jovem.

  1. My Worst Enemy (Meu pior inimigo, Mehran Tamadon)

O filme mais criminalmente subestimado do Oriente Médio no ano passado é também sua obra mais provocadora.

Tamadon, documentarista e satirista iraniano radicado em Paris, assume um alvo deveras árduo a seu quatro filme: reencenar o sádico interrogatório e a tortura imposta a prisioneiros políticos em seu país natal e apresentar os resultados a oficiais de inteligência, quem sabe, com a crença ingênua de que pudessem despertar sua consciência.

Tamadon recruta Zar Amir Ebrahimi, sua concidadã exilada e estrela de Holy Spider (Ali Abassi, 2022), ao assumir para si o papel do prisioneiro interrogado. As coisas não vão tão bem quanto planejadas e o que começa como um sofisticado exercício de faz-de-conta logo se converte em um incisivo exame dos motivos egóicos do próprio diretor, das limitações do meio, da ética um tanto questionável do gênero e da verdadeira capacidade do cinema.

Perturbador e multifacetado, Meu pior inimigo é certamente o filme de reencenação a dar fim a todos os filmes de reencenação.

  1. Bye Bye Tiberias (Lina Soualem)

Diante de 7 de outubro, o sucesso esmagador do documentário de Lina Soualem se mostrou um dos poucos momentos de esperança ao cinema palestino.

Em sua segunda obra, a cineasta palestino-argelina volta a câmera à própria mãe, Hiam Abbas, a atriz palestina e, quem sabe, árabe mais aclamada do mundo, ao conjugar um retrato íntimo de sua volta para a casa e uma dinâmica familiar complexa, junto de histórias mau resolvidas e um aterrador senso de perda.

Lina Soualem durante a exibição do filme Bye Bye Tiberias, no Festival de Qumra de 2024, no Instituto de Cinema de Doha, no Catar, em 1° de março de 2024 [Tristan Fewings/Getty Images]

Soualem habilmente mistura o mundo político com o pessoal, ao utilizar membros díspares de sua grande família para dissecar as décadas de impacto da Nakba — a “catástrofe” palestina, na qual 800 mil pessoas foram expulsas de suas terras ancestrais em 1948, para permitir a criação do Estado de Israel.

Imagens de arquivo e vídeos domésticos pontuam uma narrativa irresistivelmente afetuosa cuja força culmina em uma conclusão devastadora.

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Em uma época na qual narrativas palestinas são deliberadamente sepultadas na cena ocidental, o sucesso de Bye Bye Tiberias, um filme que trata das dores palestinas com notável maturidade, sobriedade e delicadeza, é uma prova de que o público global permanece muito à frente de sua classe política moralmente comprometida.

  1. In the Blind Spot (No ponto cego, Ayse Polat)

Em um ano de obras extraordinárias de realizadores da diáspora, o sexto e melhor filme de Ayse Polat é um destaque particular.

Uma investigação sobre desaparecimentos de cidadãos curdos na Turquia leva ao assassinato de um membro de um esquadrão da morte sancionado pelo Estado. O mistério sobre o incidente central se revela ao longo de três capítulos que apresentam três pontos de vista distintos.

Ao romper um tabu, a obra tece um comentário político sobre a perseguição do povo curdo sob o governo do presidente turco Recep Tayyip Erdogan, ao tornar-se um suspense bastante coeso de roer as unhas, com um rico subtexto sobre o papel mutável da câmera em um mundo onde a privacidade é impossível.

A Turquia de Polat é uma enorme prisão análoga ao panóptico de Jeremy Bentham: um sistema expansivo de controle onde seus cidadãos estão sempre sob vigilância. Neste mundo repleto de paranoia, a câmera se torna paradoxalmente uma ferramenta em busca da verdade e um meio de dominação. A Turquia de Polat, no entanto, não está isolada — é um símbolo de um mundo moderno em que as pessoas cedem de boa vontade suas liberdades em troca de promessas vãs de segurança e estabilidade.

  1. Mother of All Lies (Mãe de todas as mentiras, Asmae El Moudir)

O ano de 2023 foi um ano nostálgico aos documentários árabes e o surpreendente sucesso do Marrocos, de Asmae El Moudir, está entre os melhores frutos desta safra.

Vencedor de Cannes nas categorias de melhor documentário e melhor direção, por Un certain regard, El Moudir recria seu lar da infância na forma de uma maquete em escala povoada com numerosos figurinos que representam os velhos habitantes de seu bairro em Casablanca — uma espécie de resposta à perfurante falta de quaisquer fotos de sua infância.

O doce ambiente que, a princípio, parece uma homenagem à família logo é substituído por uma busca sinistra envolvendo os violentos protestos por pão de 1981 e o esquecimento coletivo de toda uma população que jamais fez as pazes com seu passado sangrento.

A desdenhosa e mal-humorada avó da diretora — estrela sem igual do filme — resiste ao olhar inquisitivo de sua neta, ao constantemente desafiar as dinâmicas de poder na realização.

O título em árabe do segundo filme de El Moudir, brilhantemente inventivo, é Kedba beeda, ou Mentira inocente, ao aludir às fantasias ingênuas que contamos a nós mesmos e nossos filhos e netos para ir adiante — e para enterrar nossos traumas escaldantes. Contudo, como sugere El Moudir, as mentiras do passado escondem mentiras ainda maiores do presente — mentiras que nem ela nem nenhum outro cineasta de sua geração foi capaz de confrontar.

  1. About Dry Grass (Sobre a grama seca, Nuri Bilge Ceylan)

Samet, personagem de Deniz Celiloglu, é possivelmente o protagonista mais narcisista do ano: um professor insuportavelmente autocentrado preso em uma modesta vila que ele detesta. Sua esperança de garantir uma transferência desesperada a Istambul se frustra quando dois de seus alunos o acusam de má conduta.

Todavia, não se trata de mais um conto habitual sobre masculinidade tóxica e abuso de poder, à medida que, nas mãos do maior cineasta vivo da Turquia, este drama rebelde de sala de aula se torna um microcosmos de uma nação paralisada por burocracia e insegurança — ou ainda um estudo de uma geração de homens vaidosos e frágeis demais para enfrentar sua mediocridade, além de dissecação forense dos vícios institucionais de se manter um status quo claustrofóbico, esmagador e desolado.

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Com quase três horas e meia, o nono filme de Ceylan tem diálogos sem fim, emoções cruas e é quase nauseante, vez ou outra. É também uma das experiências mais imersivas do ano: um tipo de drama chekoviano moralmente perturbado e repleto de personagens destruídos, maculados por uma persistente falta de consciência própria ou medo terminal de compreender seus limites emocionais, intelectuais e materiais.

Ceylan jamais se interessou em criar personagens simpáticos ou facilmente categorizados.

Sobre a grama seca não é nada diferente: um filme que desafia, questiona e, em último caso, subverte a empatia humana, ao nos forçar a encarar nossa posição elevada, como espectadores, de superioridade moral e expor verdades desconfortáveis não somente sobre os personagens, mas também sobre fracassos e preconceitos pouco lisonjeiros de seu público.

  1. Animalia (Sofia Alaoui)

A estonteante obra de estreia de Sofia Alaoui, produzida no Marrocos, nos proporciona o maior filme árabe de ficção científica da história até então. Não se trata de uma hipérbole. Um breve catálogo de filmes do gênero do mundo árabe, do século passado, oscilou entre o melodrama e o terror — os melhores dos quais, adeptos de narrativas clássicas e temas explícitos.

Alaoui vira a ficção científica do avesso, seja visual, temática ou narrativamente, e o resultado é a obra mais ambiciosa e original do Oriente Médio em 2023.

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A fascinante estreante Oumaima Barid é Itto, uma jovem grávida unida em matrimônio a uma família rica, comandada por uma matriarca dominadora e intransigente. Com raízes humildes do povo berbere, Itto é considerada por sua sogra como uma interesseira, aquém de seu filho.

O mundo de Itto muda subitamente quando uma ocorrência mistificante, similar a uma invasão alienígena, enlouquece os animais, interrompe sinais de telefonia e escurece os céus em torno de sua luxuosa casa de campo. A protagonista é então escoltada a uma odisseia atordoante que transforma sua vida para sempre.

Este enredo lucidamente descrito aqui pode ludibriar o leitor, dado que Animalia é tudo exceto uma narrativa direta ou tradicional.

Alaoui jamais revela as particularidades da suposta invasão, que pode ser ou não um fenômeno extraterrestre. A narrativa ostensivamente linear toma um rumo radicalmente avesso no último ato, quando descende a uma paisagem surreal e psicodélica.

Neste entremeio, as preocupações da diretora logo vêm adiante: os obstáculos impostos a uma mobilidade vertical em um país assolado pelo elitismo; o relacionamento entre a luta de classes e a liberdade das mulheres em um processo de modernização; o vazio da religião organizada e sua posição inadequada frente à vida moderna; e — ainda mais intrigante do que tudo isso — a identidade berbere reprimida por uma cultura árabe monopolizante.

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Animalia é uma experiência quase puramente sensória que recontextualiza a questão de Deus e do universo dentro de uma crença berbere ancestral no animismo — uma correlação direta com o título do filme.

Trata-se de um conceito intrépido realizado por Alaoui com uma destreza magistral e confiança rara a uma cineasta estreante. Em suma, não há nada como Animalia na história do cinema do Oriente Médio — um filme milagroso que dá à luz a um talento único e visionário.

Joseph Fahim é curador e crítico de cinema egípcio. Representante árabe do Festival de Cinema de Karlovy Vary, ex-membro da Berlin Critics’ Week e ex-diretor de programação do Festival Internacional de Cinema do Cairo. Coautor de diversos livros sobre cinema árabe. Seus textos foram publicados em ao menos cinco idiomas, em redes internacionais como Middle East Institute, Al Monitor, Al Jazeera, The Independent, The National e Verité.

Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye em 28 de dezembro de 2023

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