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De Ibn Battuta a Malcolm X: Como seis autores descreveram o Hajj

A peregrinação islâmica é vista como uma jornada espiritual. A seguir, veja como escritores ao longo dos séculos descreveram o profundo impacto do Hajj sobre suas vidas.
Malcolm X se reúne com então rei da Arábia Saudita, príncipe Faisal, durante viagem ao país, em Jeddah, abril de 1964 [Saudi Press Agency/Creative Commons/Reprodução]

Para os muçulmanos, a peregrinação ou Hajj é considerada uma oportunidade de novos inícios, ao representar, muitas vezes, a experiência mais transformadora — e mesmo transcendental — de suas vidas.

Muito embora uma versão do Hajj fosse realizada na região da Arábia antes mesmo de o Profeta Muhammad pregar sua mensagem, o rito islâmico data de 628 d.C.. Este foi o ano que o Profeta e seus seguidores receberam autorização para peregrinar a Meca após um tratado firmado com os clãs locais para encerrar anos de conflito.

No ano seguinte, em 629, exércitos islâmicos conquistaram Meca e removeram todos os ídolos da Caaba e da área ao redor, um evento que marcou o fim das práticas politeístas em Meca e o começo de um culto exclusivamente monoteísta.

Os primeiros relatos do Hajj se dão em terceira pessoa, registrados no hádice, ou nas narrativas atribuídas ao Profeta Muhammad. Um dos registros mais notáveis é a “peregrinação do adeus”, durante a qual o Profeta anunciou a conclusão de sua carreira, ao emitir seu sermão derradeiro antes de sua morte, em 632.

Na ocasião, o Profeta Muhammad fez sua célebre afirmação sobre os valores igualitários do Islã, sem discriminação de raça, ao recorrer à peregrinação como seu exemplo. “Toda a humanidade descende de Adão e Eva”, disse o Profeta. “Um árabe não é superior a quem não é, tampouco o inverso; um homem branco não está acima de um homem negro, tampouco o inverso”.

Este sentimento ressoaria entre os muçulmanos por centenas de anos, ao conceder contexto à epifania de Malcolm X sobre a irmandade dos povos na ocasião de sua própria peregrinação em 1964.

A seguir, seis relatos do Hajj ao longo da história:

Ibn Jubayr em 1184

Um dos primeiros relatos pessoais ainda existentes sobre a peregrinação islâmica é do geógrafo árabe espanhol Ibn Jubayr, do século XII, período marcado por tumultos no Oriente Médio, em meio ao colapso da dinastia fatímida e a unificação do califado sob Salah al-Din.

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Segundo a lenda, Ibn Jubayr foi forçado por seu mecenas a beber vinho e, para expiar o pecado, em 1184, decidiu partir às cidades santas de Meca e Medida, com passagem pelo Egito no meio do caminho.

Ibn Jubayr fornece um relato detalhado e objetivo da peregrinação, em abril de 1184 segundo o calendário cristão — ou 579 conforme o calendário islâmico. O leitor moderno, contudo, pode obter alguns insights interessantes sobre como era o Hajj na época. Alguns aspectos podem até mesmo parecer estranhos, enquanto outros são familiares.

Por exemplo, o geógrafo espanhol alerta sobre a ameaça de bandoleiros da tribo Banu Shu’bah, que, a despeito da santidade do evento, “realizavam ataques contra os peregrinos a caminho de Arafat”. Mais familiar é a ideia de “Hajj luxuoso”, com muçulmanos abastados da era medieval pagando grandes somas por uma viagem confortável.

Caravana iraquiana a Meca, século XIII [Biblioteca Nacional da França/Wikimedia/GNU FDL]

Escreve Ibn Jubayr: “O acampamento deste emir do Iraque era maravilhoso de ver e abastecido de forma soberba, com tendas e estruturas enormes e belíssimas, pavilhões e toldos majestosos e um aspecto tamanho que jamais vi antes”.

Um episódio dramático de sua peregrinação é a deflagração de confrontos entre negros nativos da região de Meca e visitantes turcomanos do Iraque, incluindo alguns feridos. “Espadas foram desembainhadas, flechas foram postas nos arcos e lanças foram atiradas; e alguns comerciantes sofreram saques”, escreveu Ibn Jubayr sobre o caos que transcorreu.

Ibn Battuta em 1325

Outro peregrino que viajou a Meca dois séculos depois foi Ibn Battuta, jurista marroquino e um dos mais famosos viajantes do mundo medieval. Nascido em 1304, o escritor amazigue passou por toda África, Oriente Médio, sul da Ásia e mesmo China.

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Aos 21 anos, Ibn Battuta deixou seu país natal para realizar o Hajj e embarcou em uma odisseia da qual não voltaria passado um quarto de século. Em sua obra prima, Ar-Rihla (“A Jornada”), o autor marroquino descreve os vários ritos do Hajj, assim como Ibn Jubayr antes dele, dentre os quais o ato de apedrejar o diabo e o sacrifício de um animal como clímax da peregrinação.

Cópia histórica do Livro de Viagens e Ibn Battuta, em exposição no Museu Neues de Berlim, Alemanha, em 22 de julho de 2019 [Wikimedia/Creative Commons 4.0]

Como seu predecessor andaluz, Ibn Battuta raramente fala do que sentiu ou viveu em primeira mão, salvo orações ocasionais inclusas no texto.

Ainda assim, sua excitação em conhecer a Caaba é notável em uma descrição em particular, na qual nota o véu sobre a estrutura como “uma noiva sobre seu trono de majestade, que caminha passos orgulhosos em um manto de beleza”.

Evliya Celebi em 1672

No século XVII, o nobre turco Evliya Celebi credita a um sonho sua decisão de cruzar a Anatólia, o leste Europeu, as cordilheiras do Cáucaso e boa parte do Oriente Médio rumo a Meca.

Em sua visão, um jovem Celebi se encontra com o Profeta Muhammad dentro de uma mesquita e, em vez de pedir sua intercessão no Dia do Julgamento, implora sua bênção para poder viajar. O Profeta lhe dá consentimento e o que se segue são décadas de uma jornada ao longo de todo Império Otomano e das regiões vizinhas.

Celebi registra sua experiência em seu Seyahetname (“Livro de Viagens”), uma obra que mistura ora eventos factuais ora episódios que se estendem aos limites da verossimilhança.

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Celebi viaja pela costa da Anatólia até a cidade de Jerusalém, antes de se juntar a uma caravana pesadamente armada de peregrinos na Síria. Como aristocrata turcomano, Celebi obteve acesso a oficiais do império e líderes tribais, incluindo o xerife de Meca. Sua jornada é então escoltada contra o risco de bandoleiros a caminho do deserto.

Ao chegar em Meca, o viajante põe sobre o papel descrições ricas dos costumes e das pessoas. “O povo de Meca tem a pele escura, alguns deles com a tez avermelhada ou castanha, olhos de gazela, uma voz doce e rostos redondos; mantendo para si seus conselhos, cavalheiros de pura linhagem hachemita”, relata Celebi sobre os habitantes da cidade santa, ao caracterizá-los como mercadores.

Outro aspecto notável de seu relato do Hajj são as descrições do componente comercial de sua viagem. Simpático à hipérbole, o autor inclui em seu relato a compra de até 50 mil camelos para a peregrinação de viajantes damascenos, que compravam bens ao longo do caminho.

“Homens das tribos árabes também ficaram ricos e vem aqui uma vez por ano, com seus filhos e suas esposas, para comprar coisas preciosas”, escreveu Celebi.

Richard Burton em 1853

Embora não fosse um verdadeiro peregrino, sequer muçulmano, o aventureiro britânico Richard Burton representou uma tendência europeia de fascínio com o mundo islâmico e seus rituais.

Como um soldado britânico na Índia, Burton ganhou fluência em dezenas de idiomas, incluindo árabe, persa e pastó, ao se tornar um ilustre tradutor de obras orientais, como o Livro das Mil e uma Noites e o Kama Sutra.

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Para testemunhar o Hajj, Burton se passou por um homem pastó, ao entrar na cidade de Meca junto de uma caravana a caminho de Medina. Seu feito não era incomum entre aventureiros da Europa, mas o que tornou sua jornada marcada foi a descrição detalhada da peregrinação que Burton produziu logo a seguir. Seus relatos revelam como os europeus enxergavam, na época, o mundo islâmico.

Representação de Richard Burton vestido de árabe em uma cópia de seu relato do Hajj do século XIX [Domínio Público/Reprodução]

Ao descrever o medo de ser flagrado e capturado durante visita a Caaba, diz Burton: “Uma ação apressada ou uma gafe, uma palavra errada, uma oração ou reverência, e meus ossos tingiriam de branco as areias do deserto”.

Burton é ainda um dos poucos não-muçulmanos a descrever em primeira mão os ritos do Hajj: “Primeiro, eles circundam o Haram. Na manhã seguinte, fui admitido na casa de Nosso Senhor; então, fomos ao poço sagrado, à água sagrada de Meca, e então à Caaba, na qual está a célebre pedra negra, onde dizem uma prece pela Unidade de Allah”.

Muhammad Asad nos anos 1920 e 1930

Nem todos os europeus que participaram do Hajj foram orientalistas curiosos. Um exemplo de genuíno fiel da religião islâmica foi o escritor e jornalista Muhammad Asad, que escreveu sobre o simbolismo da peregrinação em sua autobiografia, A estrada a Meca.

Nascido em 1900 na cidade ucraniana de Lviv, de uma família de rabinos austro-húngaros, como Leopold Weiss, Asad mudou-se à Palestina sob Mandato Britânico no início dos anos de 1920, e rapidamente desenvolveu um interesse pelo idioma árabe e pela cultura islâmica.

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Aos 26 anos de idade, converteu-se ao Islã e migrou ao Estado nascente da Arábia Saudita, que havia conquistado Meca e Medina em 1924. No país, tornou-se um assessor de confiança do pai fundador da Arábia Saudita, o rei Abdulaziz. Foi então que realizou o Hajj cinco vezes, vivências com um impacto profundo no jovem austríaco.

Ao descrever o ritual do tawaf, no qual muçulmanos circundam sete vezes a Caaba, disse Asad: “A Caaba é um símbolo da Unidade de Deus; e o movimento corporal do peregrino em torno da estrutura é uma expressão simbólica da atividade humana, ao implicar que não somente nossos sentimentos e pensamentos compõe a ‘vida interior’, como também nossa vida externa, nossos feitos e nossos empreendimentos práticos, com Deus no centro de tudo”.

Ao se encontrar no meio de uma multidão diversa de fiéis — da África, do Sudeste Asiático e da Índia —, Asad descreve um estado de transcendência que sentiu ao realizar o ritual. “Caminhei sem parar, os minutos se passaram, tudo que era pequeno e amargo em meu coração começou a deixá-lo; tornei-me parte de um fluxo circular — oh, é este o sentido do que estamos fazendo? Tornarmo-nos cientes de que um é parte do todo, do movimento em órbita?”

Asad se tornou um diplomata para o recém-criado Estado do Paquistão e morreu em Granada, na Espanha, em 1992.

Malcolm X em 1964

Um dos mais célebres relatos do Hajj, ao demonstrar o potencial da viagem em transformar um indivíduo, é a peregrinação de Malcolm X em 1964.

O ativista por direitos civis sofreu de isolamento e ameaças após romper com a chamada Nação do Islã (NOI) nos anos prévios. Até sua jornada a Meca, o ex-porta-voz do movimento defendia uma solução separatista linha-dura para a perseguição dos afro-americanos.

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Porém, durante o Hajj, deparou-se com a abordagem islâmica sobre a igualdade racial. Ao vestir o Ihram — as vestes brancas usadas pelos peregrinos — sentiu-se em um caldeirão homogêneo, sem diferenças de cor, classe ou origem. Suas observações catalisaram uma profunda mudança em seu ponto de vista.

Malcolm X entrevistado por repórteres em 1964 [Library of Congress/Domínio Público]

Em uma carta a um amigo após a experiência, escreveu sobre companheiros brancos: “Sua fé na Unidade de Deus de fato removeu o ‘branco’ de suas mentes e mudou automaticamente suas atitudes e posicionamentos sobre as pessoas de cor. Sua crença na Unidade de Deus de fato os distinguiu dos brancos americanos; suas características externas e físicas não influenciaram em nada meu pensamento no período íntimo que compartilhamos”.

Malcolm X permaneceu um militante firme e um crítico contumaz do supremacismo branco, até sua morte em fevereiro de 1965, pouco menos de um ano depois de sua peregrinação. Todavia, durante o Hajj, viu uma forma de superar a discriminação racial.

Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye em 23 de junho de 2023.

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