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Soldados israelenses em Gaza ostentam má conduta

‘Diante da crise, mulheres carregam suas famílias nas costas’, relata ativista sobre Gaza

A ocupação israelense na Palestina histórica impõe às mulheres decisões dificílimas desde muito cedo, reportou a ativista Amani Mustafa, em conversa com o MEMO.
Palestinos realizam operações de busca e resgate após o ataque israelense à casa da família Abu Aisha em Deir al Balah, Gaza. Na casa havia muitas mulheres e crianças. [Ali Jadallah/Agência Anadolu]

A natureza prolongada da ocupação israelense sobre as terras palestinas significa que mulheres têm de tomar decisões dificílimas desde muito cedo, reportou Amani Mustafa, diretora nacional da ong Women for Women International (WfWI), em entrevista ao MEMO. Para ela, trata-se de um elemento singular da causa palestina, instrumental em reconstruir as comunidades.

“Sempre que houver uma crise, veremos mulheres carregando suas famílias inteiras sobre seus ombros”, comentou Mustafa. “As mulheres estão constantemente construindo e reconstruindo suas vidas, para criar uma nova geração plena de esperanças”.

À medida que Israel segue com seus massacres em Gaza, mulheres e crianças são a maioria das mortes — ao menos 56% segundo as Nações Unidas.

Mulheres também são alvejadas deliberadamente na Cisjordânia, onde suas histórias ainda são ignoradas. Mustafa reiterou que essas mulheres navegam através de dificuldades diárias, desde checkpoints militares a questões sociais, além de proteger e prover a suas famílias.

Mustafa cresceu na Cisjordânia e viveu em primeira mão o impacto do conflito. “O medo de que soldados israelenses invadissem minha casa e nos prendessem foi uma presença constante em toda a minha infância”, recordou a ativista. “Esse ambiente volátil e altamente militarizado deu forma à minha compreensão de que temos de dar apoio às mulheres nas zonas de conflito, pois eu mesma senti na pele o medo e a ansiedade que tudo isso cria”.

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Essa compreensão a levou a filiar à WfWI, organização dedicada a mulheres que sobreviveram a situações de conflito em alguns dos países mais afetados, incluindo Afeganistão, Iraque, Ruanda e República Democrática do Congo. A Palestina é a mais recente prioridade da organização, com iniciativas voltadas aos desafios únicos das mulheres palestinas.

“O contexto na Palestina é altamente volátil, mas mantenho contato próximo com mulheres de Gaza desde os primeiros dias da escalada em curso”, observou Mustafa. “Muitos momentos me deixaram paralisada, incapaz de sequer imaginar como alguém poderia viver em tais condições, sem amenidades básicas, como por exemplo banheiros. As mulheres têm de fazer fila por horas para usar um banheiro e dividem suas tendas improvisadas com dezenas de pessoas”.

A violência na Cisjordânia também se agravou. “Mais de 200 mil palestinos perderam os meios de subsistência, especialmente aqueles que trabalham na construção civil ou no setor agrícola israelense, sem acesso a necessidades básicas como saúde e alimento. Em áreas como Hebron, sob completo lockdown, a situação é particularmente precária”.

A brutalidade ocorre em plena luz do dia, seja contra aqueles que atiram pedras ou transeuntes apenas. Invasões de madrugada também se tornaram mais e mais comuns. Estima-se ao menos 505 palestinos mortos na Cisjordânia desde outubro, segundo dados confirmados pelas Nações Unidas. A escalada forçou a ong a adaptar sua abordagem às demandas urgentes das mulheres palestinas, ao trabalhar de perto com parceiros locais para providenciar formação vocacional e assistência legal e psicossocial, além de serviços essenciais, como linhas-diretas e abrigos, para sobreviventes de tamanha violência.

Quem conhece a história palestina, enfatizou Mustafa, sabe que as mulheres possuem em suas comunidades um protagonismo histórico. A Palestina é tradicionalmente uma sociedade única e cosmopolita, com traços progressistas e mulheres muito bem instruídas e engajadas.

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Porém, a violência imposta por Israel, incluindo a expansão dos assentamentos ilegais e ataques conduzidos por colonos contra famílias e camponeses palestinos, além do aumento drástico nos checkpoints militares de Israel, virou do avesso a vida cotidiana da população nativa. Tudo isso, ao longo das décadas, resultou em uma sociedade mais isolada e, portanto, mais conservadora. Para proteger as mulheres, surgiu paradoxalmente um impulso de superproteção, ao lhes negar direitos e liberdades.

Uma história marcante compartilhada com a ong ilustra os danos de longo prazo deixados pela ocupação israelense, incluindo uma guinada conservadora à medida que as famílias recorrem a casamentos arranjados como forma desesperada de proteger suas filhas.

“Uma mulher de Hebron compartilhou comigo como sua filha sofre assédio diário nos postos de controle militar [de Israel], impedida de ter seu acesso à educação e a outras liberdades básicas. Ela me disse que não se pode falar muito dos direitos das mulheres e que algumas famílias, com o tempo, passaram a entender que seria mais seguro casar logo suas filhas do que deixá-las ir a uma universidade, cujo percurso levaria apenas a assédio e mais assédio”.

Mustafa reafirma a importância de respeitar os contextos culturais ao empoderar as mulheres e meninas. “Defendemos que as comunidades encontrem as melhores soluções para protegê-las, desde que não há machuquem. Nossa abordagem é buscar compreender e construir devagar a autonomia das mulheres”.

O trabalho de sua organização na Palestina não se refere apenas a socorro imediato, mas busca consolidar também esforços de mudança e empoderamento a médio e longo prazo.

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O mesmo ocorre em Gaza: o uso israelense de necessidades básicas como arma, mesmo comida e higiene, é uma tática cruel da colonização contra a população nativa. Milhares de caminhões carregados de comida, água e suprimentos médicos permanecem à espera do aval israelense do lado egípcio da travessia de Rafah, a fim de aliviar a crise enfrentada pelas comunidades civis — incluindo as dezenas de milhares de grávidas em situação carente.

Bebês nascem nas tendas de refugiados e têm seus cordões umbilicais cortados com qualquer objeto afiado que possa ser encontrado em meio aos escombros. Cesarianas, dolorosas mesmo em condições normais, são realizadas sem anestesias, por cirurgiões que carecem de insumos e ferramentas, além de água e antibióticos para evitar infecções. Em alguns casos, como mostram reportagens do jornal americano The Washington Post, cesarianas são conduzidas mesmo post-mortem, em mães assassinadas pelas forças de Israel.

Os detalhes são inimagináveis, apontou Mustafa. Cozinhas comunitárias dão alguma ajuda, mas não há comida suficiente. “Mulheres têm de pular as refeições para alimentar seus filhos, o que leva a uma desnutrição grave, sobretudo em mulheres grávidas”. A falta de privacidade e meios de higiene pessoal exacerba o trauma. “Mulheres são obrigadas a usar farrapos arrancados das tendas como absorventes. O trauma físico e psicológico deixa cicatrizes claras em seus corpos e em seus rostos. Quando se olham no espelho, muitas me disseram, sequer se reconhecem”.

O deslocamento à força, sob os bombardeios e incursões por terra de Israel, empurrou mais de um milhão de palestinos à cidade de Rafah, no extremo sul de Gaza, a tendas e mais tendas que brotaram por toda a região. “Mulheres relatam caminhar por horas, carregando seus pertences, sem conseguir encontrar qualquer forma de transporte. E quando chegam a algum destino, logo são novamente obrigadas a continuar a caminhar, sem jamais encontrar abrigo ou segurança”, notou Mustafa, ao transmitir os relatos.

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Apesar da exaustão, as mulheres palestinas continuam a cuidar de seus filhos, muitos dos quais novos órfãos devido à violência. Ao comparar a situação em Gaza com outros conflitos ao redor do mundo, Mustafa enfatizou que, embora haja histórias semelhantes, a experiência palestina é distinta pela natureza prolongada e pela magnitude das hostilidades militares.

“Esta é talvez a última ocupação colonial do planeta, onde as mulheres enfrentam humilhação, aprisionamento, tortura e ataques diários”, indicou Mustafa. “O cerco e a ocupação israelenses criam dificuldades sem paralelo”.

Mesmo que haja um cessar-fogo, o caminho para cura será longo e árduo. “Reconstruir Gaza, e tratar dos traumas dessas pessoas, certamente levará décadas. As mulheres terão de seguir sua vida como viúvas e mães que perderam seus filhos. Sob tamanha destruição, o que futuro lhes aguarda?”

Apesar da realidade atroz, Mustafa não perde as esperanças: “Em tempos de crise, ansiedade e pânico sobre o futuro é natural, mas não temos opção senão acreditar que amanhã será melhor. Não podemos nos dar ao luxo de perder as esperanças. Quando chegar a hora de reconstruir o país, de reconstruir Gaza, tenho certeza: as mulheres palestinas estarão na vanguarda”.

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