Recordo de meu entusiasmo ao saber que The Confession: Living the War on Terror — ou A Confissão: Vivendo a Guerra ao Terror — contaria a história de vida de Moazzam Begg. O mundo precisava conhecer sua história. Moazzam foi perseguido por serviços de inteligência meramente por suas crenças, submetido a abusos gravíssimos, incluindo tortura física e psicológica em campos de detenção, como Bagram e a Baía de Guantánamo. Moazzam foi privado de seu ambiente familiar por incontáveis anos, sob condições absolutamente injustas.
Este documentário de 96 minutos, dirigido por Ashish Ghadiali, aborda também algumas das tensões que tomaram a época de seu lançamento, em meados de 2016, quando a presidência de Barack Obama se encerrava nos Estados Unidos, sob promessas jamais cumpridas e um horizonte incerto. Obama havia prometido fechar a penitenciária da Baía de Guantánamo, mas tudo que conseguiu foi consolidar a plena falta de transparência sobre a matéria e perpetuar o problema.
O filme começa com Moazzam sentado em uma mórbida sala de entrevistas — um cenário inquisitivo similar àquele com que se acostumou ao longo de sua perseguição. Sua expressão é de um homem corajoso e sua voz é gentil e franca. Seu relato começa ao recordar suas experiências de vida, crescendo com o racismo na região de Birmingham, na Inglaterra, que o levou eventualmente a abraçar sua identidade islâmica. Moazzam descreve sua jornada como uma “luta com conceitos de identidade”, sem saber ao certo se era britânico, asiático, muçulmano ou paquistanês, algo que ecoa os sentimentos de muitos muçulmanos do Reino Unido ainda hoje. Moazzam recorda também a pressão sofrida para negar sua fé, no objetivo de adotar “valores britânicos”. No fim da década de 1990, Moazzam abriu uma livraria e foi então que se tornou alvo dos serviços de inteligência.
Imagens e vídeos perturbadores demonstram os efeitos da Guerra do Golfo de 1991 e do conflito na Bósnia, alguns anos depois. Profundamente preocupado com o sofrimento de seus irmãos em casa e no exterior, Moazzam viajou à Bósnia. Incidentes de limpeza étnica, estupro, ataques deliberados a mulheres e crianças e uma insistência ocidental em lavar as mãos diante das atrocidades são ainda familiares hoje. De volta a seu relato, Moazzam começa a reviver os eventos que o implicaram na chamada Guerra ao Terror, quando então que Moazzam foi sequestrado e encarcerado no Paquistão — em seguida em Bagram, no Afeganistão, e posteriormente, na Baía de Guantánamo.
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Penso que é importante notar que a história de Moazzam ressoa com a de muitas pessoas, não somente muçulmanos, mas todos aqueles críticos à política externa das potências ocidentais, ou que ousam protestar em solidariedade às populações oprimidas no mundo. No entanto, para os muçulmanos, não tardou para a Guerra ao Terror se revelar uma guerra contra o Islã. Países ocidentais lançaram mão de ataques ideológicos contra as comunidades islâmicas, mediante políticas discriminatórias sob o pretexto de combate ao terrorismo. Como resultado, seus cidadãos muçulmanos foram estigmatizados e ostracizados.
O papel do entrevistador — que nunca vemos — é também intrigante. Ao fim do documentário, vemos a atmosfera mudar de entrevista a interrogatório. É particularmente notável a agitação e frustração em sua voz ao inquirir Moazzam sobre os eventos no Oriente Médio. O entrevistador parece afoito em conseguir que Moazzam condene as ações da Al Qaeda, apesar deste expressar sua plena divergência. Sua postura tem como intuito reproduzir as demandas constantes que autoridades ocidentais impuseram aos muçulmanos, para que denunciassem publicamente as ações de extremistas.
Central à história é também “Andrew”, o agente do MI5, serviço de inteligência britânico, que aparece subitamente na casa de Moazzam. Pouco após se encontrarem novamente, quando Andrew o aborda em um aeroporto da Turquia, o assunto se volta a crenças políticas. No reencontro seguinte, Moazzam está em Bagram, com um capuz sobre a cabeça, algemado sob a mira de uma arma.
Se considerarmos o contexto desses incidentes, tudo isso ocorreu ainda antes dos atentados de 11 de setembro de 2001, ou dos ataques à bomba na cidade de Londres em 7 de julho de 2005, ao evidenciar uma agenda racista dos serviços de inteligência no Ocidente para perseguir homens não-brancos e barbados imediatamente rotulados como suspeitos de terrorismo.
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O documentário inclui ainda trechos de entrevistas do falecido pai de Moazzam. Em um dos vídeos, vemos que a prisão deixou suas marcas. Trata-se de uma importantíssima expressão da gravidade do caso, ao buscar conscientizar seu público das injustiças cometidas por regimes ocidentais, como uma ameaça a todo e qualquer cidadão — não somente muçulmanos. Moazzam perdeu a chance de ver o nascimento de seu filho e o filho não pode crescer com o pai por anos a fio.
The Confession traz à luz as atrocidades que Moazzam sofreu em custódia. Os uniformes laranjas das penitenciárias já são uma marca registrada no imaginário das pessoas, mas poucos parecem conhecer a dimensão da tortura imposta aos prisioneiros. As lembranças vívidas do entrevistado incluem assédio sexual, estupro, confinamento solitário e chantagem emocional, ao convidar os espectadores a imaginar e reconstruir os traumas que Moazzam sofreu na pele.
Moazzam tornou-se diretor da CAGE, uma organização de direitos humanos que “trabalha para empoderar comunidades vitimadas pela Guerra ao Terror” e investigar violações cometidas não apenas em Guantánamo, mas sob todo o escopo das operações de então. A história de Moazzam reforça a razão de ser de organizações como a CAGE, para que abusos de direitos humanos não sejam varridos para debaixo do tapete. Não somente a CAGE exerce um papel positivo em monitorar e investigar violações por todo o mundo, como denuncia a prática de detenção sem acusação ou julgamento de indivíduos cujo direito à defesa é negado sistematicamente.
Na época do documentário, a CAGE estimava que ao menos 780 homens, todos muçulmanos, haviam sido detidos em Guantánamo sem o devido processo, incluindo até mesmo o falecimento de alguns dos prisioneiros.
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A CAGE lutou pela libertação de Mohamedou Ould Slahi, engenheiro da Mauritânia, que, assim como Moazzam, permaneceu em Guantánamo sem acusação ou julgamento sob incontáveis métodos de tortura dos mais depravados, descritos por analistas como alguns dos mais graves que já vieram à tona.
O que é fundamental perceber com The Confession é que Moazzam jamais foi julgado ou sequer indiciado por crime algum. A recusa em levá-lo a julgamento era um componente frio e deliberado dos esforços da inteligência ocidental para pressioná-lo e incriminá-lo por crimes que jamais cometeu. Lamentavelmente, trata-se de uma trágica realidade a muitos outros, difamados como “terroristas”.
O documentário proporciona uma série de mensagens ao espectador, como o caráter contraprodutivo dos métodos de inteligência e a detenção arbitrária imposta a diversos indivíduos. No entanto, uma mensagem que se destaca é sobre as consequências devastadoras da Guerra ao Terror, sobretudo na forma com que os governos respondem a crises, ao derramar bombas sobre civis inocentes, incorrendo, na prática, eles mesmos, em atos de terrorismo e fomentando, por inferência, a mobilização de grupos extremistas.
Precisamos nos perguntar e perguntar a nossos políticos se essa é verdadeiramente a forma correta de lidar com o terrorismo, à medida que sua Guerra ao Terror, supostamente incumbida de mitigar o fenômeno, não somente fracassou como saiu pela culatra. O terrorismo cresceu nos anos seguintes com o advento do Estado Islâmico, ou Daesh, como uma prova concreta do fracasso ocidental.
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Os bombardeios do ex-premiê britânico David Cameron à Síria — sob rejeição de 59% de sua própria população — ressaltaram, à época do documentário, o poder do Estado como agente do conflito. Demonstraram também, junto a muitos outros incidentes desde então, como governos que dizem combater o terrorismo se tornam cúmplices de fomentá-lo. Paralelamente, a demonização, desumanização e perseguição imposta por agências de inteligência se mostra um fator de segregação dos indivíduos, em vez de integrá-los, ao alimentar o racismo e a islamofobia.
Em suma, The Confession é uma obra provocadora e comovente, que trata com excelência da assombrosa realidade de viver sob a Guerra ao Terror.