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Nos últimos dias da cidade: Esforços para superar limites e fronteiras

Manifestantes se reúnem na Praça Tahrir, para protestar por democracia, na cidade do Cairo, no Egito, em 25 de novembro de 2011 [Peter Macdiarmid/Getty Images]

Poucas narrativas com múltiplas perspectivas carregam o peso de seus personagens com tamanha sinceridade como o filme In The Last Days of The City, de 2016 — lançado no Brasil com o título Nos últimos dias da cidade, no Festival Internacional de Cinema do Rio.

O diretor egípcio Tamer El Said levou quase dez anos para concluir sua obra, filmada no Cairo, em Beirute e em Bagdá. O longa-metragem, de 118 minutos, não tem como tema fronteiras e jornadas através delas, mas sim como dilui-las e transcendê-las em busca de pertencimento. Seu filme venceu diversas premiações, como o Grand Prix do Festival Internacional de Cinema New Horizon.

Em entrevista com El Said e o ator anglo-egípcio Khalid Abdalla fica evidente a razão pela qual Nos últimos dias da cidade se mostra um forte integrante da muito necessária “nova onda” do Cinema Árabe.

O protagonista, Khalid, um documentarista, interpretado por Abdalla, nos empresta uma lenta através da qual enxergamos a cidade do Cairo, em sua busca por um apartamento que jamais encontra, junto ao fantasma de seu filme inacabado e de um amor há muito perdido. O sofrimento que perpassa a narrativa é tão contundente, embora preciso, que apenas os ruídos da cidade são capazes de prover algum alívio. As cenas nos bairros centrais foram gravadas até a véspera da Revolução Egípcia de 2011, que depôs a ditadura de Hosni Mubarak.

Foi precisamente testemunhar a incerteza na cidade do Cairo, antes desse episódio, que compeliu El Said a pegar a câmera. Segundo o diretor, “seja no âmbito da política ou da sociedade, ficou claro que algo grande estava prestes a acontecer, que nenhum de nós poderia continuar vivendo daquela maneira”. El Said, porém, pareceu prever as dificuldades logo adiante: “Por um lado, esperamos ansiosamente por alguma mudança, mas, por outro, sabemos que tudo isso tomará coisas que amamos e das quais não queremos nos desapegar”.

Para Abdalla, que estrelou em The Kite RunnerO caçador de pipas, de Marc Foster, 2007 — e United 93Voo United 93, de Paul Greengrass, no ano anterior —, Nos últimos dias da cidade se mostrou uma oportunidade de se tornar um “colaborador” de um filme que descreveu como “um presente”. Segundo Abdalla: “Foi naquele momento que eu comecei, como a ator, a materializar uma confrontação com o mundo bastante polarizado, diante do que significa ocupar o imaginário árabe nas telas, e o que a imagem do árabe quer dizer internacionalmente, em particular, nas salas de cinema”.

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O roteiro permaneceu fluido e autêntico com o casting de El Said. Conforme o diretor: “Eu não queria alguém que apenas repetisse as falas, mesmo que pudesse fazê-lo muito, muito bem. Eu queria alguém que trouxesse algo a mais, um pedacinho de sua alma, a seus personagens”. Abdalla diz que o papel transformou sua vida, incluindo ao se mudar de Londres ao Cairo nos anos seguintes.

Comentou Abdalla: “Todo mundo no filme interpreta uma versão de si mesmo, exceto por mim e Laila [interpretada por Laila Samy]. Eu mesmo tive de interpretar alguém que eu poderia me tornar … Foi assim que o filme praticamente nos transformou em fantasmas”.

Este é um filme dentro de um filme que dança sobre o fio da navalha — se é que há — entre a ficção e a realidade. Para El Said: “Não é somente sobre ficção e documentário, mas, quem sabe, sobre a espontaneidade e a estrutura narrativa e como encontrar uma linguagem cinematográfica neste entremeio”.

A dedicação dos atores é profunda, para dizer o mínimo. Um exemplo marcante é quando a própria mãe de El Said, Zeinab Mostafa, que interpreta a mãe do protagonista, sofre com uma enfermidade súbita, no entanto, ainda assim permite que o filho registre sua passagem por um hospital. Zeinab infelizmente faleceu durante as filmagens, algo que trouxa ao diretor uma nova camada de desafios pessoais ao editar a obra posteriormente.

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Ao longo do filme, uma voz no rádio traz as notícias dos desenvolvimentos políticos e da destruição no restante do Oriente Médio, ao nos relembrar o quão interconectados estão os eventos por toda a região. Submetidos a experiências de deslocamento e questões de identidade, estão também os amigos de El Said: Bassem, interpretado por Bassem Fayad, de Beirute, no Líbano, e Hassan, interpretado por Hayder Helo, de Bagdá, no Iraque.

Reiterou El Said: “Fomos o primeiro filme árabe a gravar em Bagdá após a ocupação”. Devido a falta de recursos durante as gravações em solo iraquiano, o elenco e a equipe tiveram de se adaptar conforme as circunstâncias. “Em vez de nos hospedarmos na Zona Verde, distrito fortificado de Bagdá, tivemos de ficar em um bairro bastante perigoso, mas penso que a cidade foi, como é de sua natureza, calorosa e gentil com todos nós”.

Há beleza no relacionamento de amor e ódio que existe entre os personagens e suas respectivas cidades. Abdalla comentou o aspecto de impotência que seu personagem incorpora, como algo que afeta as pessoas em todo lugar. “Trata-se de um sentimento que se espalhou pelo mundo, de que as coisas não podem permanecer como estão, mas que não se sabe exatamente o que fazer com isso”.

O filme é um ato de rebelião em seu conteúdo, seu estilo e sua execução, e existe como uma manifestação de resiliência perante os desafios, ainda atuais, de distribuição e exibição de produções árabes em toda região. Abdalla observou, na época do lançamento, que o chamado mundo árabe tinha apenas 980 salas de cinema em sua totalidade, para um público de cerca de 300 milhões de pessoas — um número inferior com o número de salas, por exemplo, na Polônia.

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Em retrospectiva, o filme proporciona um inventário das contradições que o caso do Egito engendrou desde então. A presciência do roteiro é palpável, mas poderiam mesmo imaginar que as cenas filmadas na Praça Tahrir logo se tomariam as manchetes de todo o mundo? A decisão de encerrar as filmagens semanas antes da revolução foi bastante ousada — ao fazê-lo, contudo, sua narrativa se torna atemporal, digna de retratar e carregar expectativas de então, perante uma cidade prestes a se transformar para sempre.

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