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Soldados israelenses em Gaza ostentam má conduta

Produção da MBC busca dramatizar a história do grupo terrorista Daesh

Mulheres caminham no campo de refugiados de al-Hol, que abriga familiares de combatentes do grupo terrorista Daesh (Estado Islâmico), no nordeste da Síria, em 11 de maio de 2021 [Delil Souleiman/AFP via Getty Images]

Gharabeeb Soud, série dramática que intrigou o público desde o anúncio de seu título, foi transmitida em maio de 2017, durante o mês islâmico do Ramadã. A polêmica sobre a série, que narra a ascensão do grupo terrorista Daesh, ou Estado Islâmico, no Oriente Médio, teve início antes mesmo de ir ao ar o primeiro episódio.

Seu nome levou as pessoas a se sentirem divididas — sentimento que seguiu conforme as semanas se passaram e a história seguiu seu curso. A maior parte da mídia adotou o título Corvos Negros, mas trata-se, na verdade, de uma referência a um verso do Corão: “E nas montanhas há trilhas, vermelhas e brancas, e de cores distintas, e outras negras como o fel”. Portanto, o título verdadeiro seria mais próximo de Montanhas Negras, ao sugerir uma representação sinistra, embora incisiva, do Daesh.

Qualquer que seja o sentido exato do título, expressa uma coisa: O perigo espreita e se encontra até mesmo entre aqueles mais próximos de todos nós.

A série — uma produção da O3, subsidiária do grupo saudita MBC — bateu recordes de investimento, com custo superior a US$10 milhões.

O enredo gira em torno da vida sob o Daesh, ao explorar a razão pela qual muita gente, das mais diversas origens, se filiou ao grupo terrorista. Contudo, caminha sobre o fio da navalha, ao traçar uma perigosa narrativa que muitas pessoas podem interpretar como simpática, de algum modo, com os integrantes do grupo.

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O drama começa com imagens escuras e fora de foco, contendo breve informação por escrito sobre diversas pessoas que desapareceram sem deixar rastros por toda a região, desde adolescentes e mulheres a homens instruídos e abastados.

Codirigida pelo egípcio Adel Adeeb e pelo sírio Hassan Qassem al-Rantesi, Gharabeeb Soud promete refletir a realidade da então situação na região, supostamente baseada em histórias reais e anedotas de pessoas que viveram sob o Daesh. A produção mistura atores e atrizes famosos de sete países árabes — algo similar às fileiras do Daesh, cujos militantes e suas ações transcenderam fronteiras.

O que distingue a série de outras produções que trataram do Daesh é o fato de vermos os eventos se desenrolarem através de vozes femininas. De certa forma, proporciona respostas a perguntas frequentes: “Por que mulheres se juntam a uma organização tão repressiva e violenta?”

Gharabeeb Soud deixa claro que cada membro do Daesh tem sua história. No primeiro episódio, conhecemos uma jovem noiva ludibriada por seu marido a se juntar ao Daesh no que esperava ser sua lua de mel. Mais tarde, a encontramos novamente, desta vez como chefe das Brigadas al-Khanssaa, uma força policial inteiramente feminina.

Outras mulheres juntam-se ao grupo em busca de seus maridos ou mesmo para evitar uma vida de “solteironas” — tipo que serve à série como uma espécie de alívio cômico. Entre as personagens, está uma dançarina egípcia de dança do ventre em busca de seu filho; uma jornalista que busca convencer o noivo a deixar o grupo; dentre outras cujo passado é revelado junto ao enredo.

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Quando meninos discutem qual o meio de transporte mais rápido para chegar aos céus — carro, barco ou avião? —, um líder lhes diz que é o “cinto”, em alusão a um atentado suicida que teriam de realizar. Os meninos sofrem abuso sexual nas mãos do líder, que ameaça matá-los caso denunciem. As crianças são ditas para nunca atirar nos pássaros, “criações de Deus”, porque seria pecado ou haram, porém são treinadas ao empregar “infiéis” e yazidis como alvos — uma expressão da desumanização.

O enredo traz um insight sobre a divisão que assola a liderança do Daesh, assim como a desconfiança prevalente entre suas fileiras. O público é convidado a testemunhar como “voluntários” podem escolher sua área de operação, por exemplo, quando perguntam às mulheres se querem aderir à “jihad nikah” — ao se casar com um combatente — ou aos setores de eletrônica, policiamento ou outros.

Embora atraia espectadores que souberam das atrocidades do Daesh pelos noticiários, Gharabeeb Soud pode ser desagradável àqueles que viveram sob o punho de ferro da organização terrorista. O drama recorre pesadamente ao sensacionalismo, com várias cenas de violência e estupro, ao tentar deixar claro seu viés contrário ao grupo.

Além disso, ao focar no Daesh como um fenômeno de extremismo religioso, a série se torna simplista. A organização expandiu seu reinado por toda a região ao explorar uma série de tensões étnicas e sectárias deflagradas pelo “mundo árabe”. É difícil assentir com a versão dramática de que as fileiras do Daesh seriam inteiramente formadas por “pessoas ruins e antissociais que acabaram juntas”. A estrutura e as camadas do grupo são ignoradas pela produção, assim como os métodos de financiamento e treinamento — também vitais à expansão de seu domínio.

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A série completamente ignora também o fato de que o Daesh encontrou uma janela de oportunidade na continuidade das políticas de repressão sanguinolenta, injustiça social e marginalização postas pelas ditaduras árabes, cujo caráter opressivo se agravou ainda mais desde 2011, com o advento da Primavera Árabe.

Antes de sua estreia, a série recebeu enorme cobertura de diplomatas americanos que manifestaram sua satisfação com um produto da indústria cultural que contestasse as mensagens do grupo jihadista. O público não foi, porém, tão compreensivo. Gharabeeb Soud recai em um retrato equivocado da realidade em campo e falha em congregar os espectadores em torno de uma percepção comum sobre a matéria. Uma análise da Al Jazeera, por exemplo, questionou as intenções da produção e concluiu que a narrativa mais causou divergências online do que qualquer outra coisa — um terreno no qual o próprio Daesh soube prosperar.

Parece haver ainda uma lacuna no que se refere à demanda por uma produção bem-informada e confiável sobre a história do Daesh, a ser exibida nos principais meios de comunicação. Isso se deve a interpretações fragmentadas de um grupo complexo com laços bastante complicados na região e além — laços que possivelmente não poderiam ser trazidos à luz do dia.

Segundo Gharabeed Soud, enquanto a liderança é formada por degenerados, aqueles que auxiliaram o Daesh seriam vítimas de uma lavagem cerebral, que somente depois perceberam a brutalidade do grupo, tentando escapar. Trata-se de uma visão simplista da hierarquia da organização e das razões que levaram pessoas das mais distintas raízes a aderirem a suas fileiras — um ponto fraco nítido nesta produção audiovisual.

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