Há uma certa franqueza em Randa Mirza, um misto de ternura e austeridade difícil de não ver. Seu olhar é firme e suas frases costumam acabar com uma breve pausa e um franzir do cenho, como se deixasse no ar um pensamento, à espera de que seu interlocutor faça uma pergunta, ao ponto das consequências extremas, ou, quem sabe, expressando uma silenciosa nota de lamento. Sua arte também é assim.
Ao longo de duas décadas, Mirza construiu uma obra em diferentes meios, muito embora a fotografia seja sua ferramenta preferida para reproduzir sobre as crônicas das paisagens sempre cambiantes de Beirute. Sua cidade natal, com sua complexa e múltipla realidade pós-guerra e a resiliência de seu povo, está no âmago de sua mais recente exposição, sob o título de “Beirutopia”, realizada no Festival Rencontre D’Arles.
O nome advém de uma de suas séries fotográficas mais consagradas, que olha de forma crítica à reconstrução no pós-guerra e ao apagamento de parte da identidade da cidade. A mostra em Arles, contudo, reúne sete séries distintas, criadas entre 2000 e 2022.
“Quando olhei para a obra como um todo, percebi que, embora cada série tenha se por si mesma, todas elas contam uma história: uma história do Líbano pós-guerra, associada à violência que vem novamente à tona em diferentes momentos da história”, comentou, em conversa com o MEMO, a autora.
A exposição acompanha um livro, uma monografia cuja curadoria é da própria Mirza. Foi a artista quem escolheu a ordem das imagens, com um cuidado notável, ao incorporar, no entanto, páginas em branco como uma expressão de ritmo.
Parece uma partitura.
“Tudo começa em preto e acaba em preto, com a explosão do porto de Beirute, em 2020. Eu busquei enfatizar, na verdade, a natureza cíclica da violência. E é por isso que as obras não estão em ordem cronológica”, acrescentou.
Eu e Mirza nos encontramos em um café popular no bairro de La Plaine, em Marselha, um lugar com uma notável atmosfera cosmopolita. “Eu não conseguiria viver em uma cidade totalmente branca, limpa demais, homogênea demais”, observou Mirza, com uma risada. “Marselha me lembra um pouco Beirute. Tem seu caos, mas é arrumadinha o bastante. Eu gosto da bagunça. Penso que nos permite certa liberdade pessoal para nos expressarmos nas ruas”.
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Mirza não nasceu em uma família de artistas, mas sua jornada pareceu natural. Sua mãe notou sua paixão e a encorajou. Mirza estudou publicidade, mas não seguiu carreira. “Por mais estranho que pareça, boa parte de meu trabalho parece remeter à publicidade. Esta série — ‘Beirutopia’ — por exemplo, é sobre como a utopia de uma cidade lhe promete um futuro, uma imagem de mentira que lhe é vendida e o colapso dessas ilusões”.
De fato, “Beirutopia” perscruta o desenvolvimento acelerado do mercado imobiliário e da gentrificação na capital libanesa, ao exibir os outdoors da cidade e capturar as aspirações refletidas no cenário urbano. “Trabalhei nessa série por dez anos, ao documentar o boom das construtoras e o momento em que tudo veio abaixo”. Um instante determinante foi a explosão do porto de Beirute. Para Mirza, o fim de uma era: “Senti como se visse o fim do capitalismo, do neoliberalismo”.
Na época, Mirza vivia em Beirute com a sua namorada. “Estávamos fotografando a cidade com binóculos, de nosso apartamento, por conta da covid”, recordou a artista. “Então, a explosão aconteceu. No dia seguinte, encontrei os binóculos nos destroços e passamos a usá-lo para registrar a devastação”. As imagens que resultaram deste processo — antes e depois da explosão, tiradas do mesmo lugar — oferecem o que a artista caracteriza como uma “visão estereoscópica” de uma fissura no tempo.
O processo artístico de Mirza busca equilibrar intuição e pesquisa. “Frequentemente, vejo em meus arredores uma imagem que captura minha atenção — então eu a fotografo. Em seguida, no entanto, vem a escavação — uma pesquisa teórica para tentar compreender por que aquilo me atraiu e o que aquilo diz sobre a realidade”. Trata-se de um casamento entre instinto e investigação, que a possibilitou, ao longo de sua carreira, abordar sujeitos complexos e carregados politicamente, como vemos em sua série “Universos Paralelos”, que sobrepõe imagens de turistas a fotografias de guerra. Na série, Mirza demonstra que os opostos coexistem, em um universo multifacetado de horror e encanto; arte e política, por um lado, e também entretenimento.
Eu estava interessada na forma com que ambos os mundos podem se sobrepor visualmente, como podem conversar um com o outro. Há sempre alguma coisa acontecendo dentro e fora das imagens; uma conversa entre o fotógrafo e o sujeito”.
Hoje, “Universos Paralelos” parece ainda mais relevante, seja no contexto prevalente das redes sociais, seja nos conflitos em curso na Faixa de Gaza que avançam ao Líbano. “Não tem precedente essa maneira com que as pessoas documentam seu próprio genocídio”, enfatizou Mirza. “Isso me lembra de uma performance da artista palestina Rafeef Ziadah, intitulada ‘Hoje meu corpo é um massacre televisionado’, de 2006. Trata-se de um vídeo curto no qual ela fala como se respondesse à ONU, diante dos chamados humanitários e dos bombardeios em Gaza”.
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Mirza se sente profundamente influenciada pela forma com que Ziadah tratou o papel da fotografia e da transmissão ao vivo em documentar atrocidades, algo que vivencia hoje no contexto do genocídio em Gaza, registrado em tempo real pelas próprias vítimas nas mais diversas plataformas online.
Mirza considera “Beirutopia” uma série finalizada, embora tenha demorado bastante para chegar a este ponto. “Eu fotografei outdoors por dez anos — sempre pensando ‘Está bem, agora acabou’. Então surgiam novos anúncios, novas obras. Durante a covid, fotografei os edifícios concluídos, mas eles pareciam vazios, como os próprios outdoors, inteiramente planos e sem sequer uma sombra”.
Esta evolução levou à série “Nós prometemos, nós entregamos”, de 2020, sobre a cidade de Beirute. O conjunto de obras explora a similaridade apavorante entre os prédios reais e imagens geradas por computador. “Nessa obra, a realidade parece quase uma simulação. Poderíamos estar em qualquer lugar — na Ásia Central, em Dubai, na Coreia do Norte. Os prédios, as árvores — tudo parece estéril. A única coisa que denuncia a natureza dessas imagens é a presença de veículos”.
Sua nova série também aborda um sentimento elusivo de esperança, na promessa de que algo real se erga do solo, apesar do colapso. “Há sempre uma ideia de utopia, sobretudo em um país como o Líbano, onde as coisas estão constantemente desmoronando. E para seguir em frente, precisamos de esperança”.
Ao refletir sobre seu trabalho e sua ligação com a cidade, Mirza se mostra bastante lúcida sobre os limites da arte. “Não acredito que a arte possa desafiar o mundo. Neste sentido, sou realista”, reconheceu Mirza. “Mas acho, sim, que a arte tem um papel em contrapor o silêncio, porque é pelo silêncio que os crimes acontecem, que coisas que não poderiam acontecer acabam despercebidas. Ao criar, criticar, denunciar, dar voz às coisas, mesmo que apenas nas frestas, abrimos espaço para algo; não deixamos que as mentiras corram livremente por aí”.
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