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Soldados israelenses em Gaza ostentam má conduta

A longa história de um país: Por que a guerra de legitimidade pende à Palestina?

Mural de Fazil Tafish, artista radicado em Gaza, retrata a resistência e resiliência do povo palestino nos muros do Hospital Baptista al-Ahli, na Cidade de Gaza, em meio aos ataques de Israel, em 10 de outubro de 2024 [Hamza Z. H. Qraiqea/Anadolu via Getty Images]

Estranho — mas foi o historiador israelense Benny Morris quem foi absolutamente preciso em prenunciar o futuro de seu país e da guerra contra os palestinos.

“Os palestinos olham para tudo com uma perspectiva ampla, de longo prazo”, comentou Morris em entrevista ao jornal israelense Haaretz de 2019. “Eles veem que, no momento, há cinco a sete milhões de judeus aqui neste país, cercados por centenas de milhões de árabes. Não têm qualquer razão para desistir, porque o Estado judeu [sic] não pode durar. Os palestinos estão fadados a vencer. Daqui 30 a 50 anos, vão nos superar — não importa o que aconteça”.

Morris estava certo. Estava certo no sentido de que os palestinos não desistirão nunca; de que jamais poderá persistir uma situação em que as sociedades prosperem e sobrevivam dentro de uma matriz infindável de segregação racial, violência e exclusão — na forma da a supressão do outro e do isolamento de si próprio.

A própria história da Palestina é prova dessa verdade. Se os oprimidos — aqueles nativos da terra — não desaparecerem ou forem dizimados, certamente se insurgirão, resistirão e reaverão sua liberdade.

Deve ser deveras frustrante a Israel que tamanha onda de assassinatos e destruição, em Gaza, especialmente, não tenha bastado para impactar os resultados derradeiros de sua guerra — a tal da “vitória absoluta” de que Benjamin Netanyahu tanto fala.

A frustração de Israel é compreensível. Afinal, como todos os ocupantes no passado, Tel Aviv também acreditou que a quantidade “certa” de violência seria suficiente para debelar e subjugar uma nação colonizada.

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Os palestinos, porém, têm uma trajetória intelectual própria que guia seu comportamento coletivo.

Das muitas classificações da história moderna, estudiosos franceses costumam separar dentre “histoire événementielle”, ou história dos eventos, e “longue durée”, ou história de longa data. Em suma, a primeira crê que a história é resultado do acúmulo de eventos de causa e consequência ao longo do tempo; a outra, vê a história em camadas muito mais complexas.

A História, como algo sensível, só pode ser vista em sua totalidade e não apenas na soma dos eventos históricos, antigos ou recentes; mas sim na soma de emoções e de ideias, na evolução da consciência coletiva, na formação das identidades e relacionamentos e nas mudanças sutis que se impõem às sociedades com o tempo.

Os palestinos são o exemplo feito de uma história feita de ideias e não armas; memória e não política; esperança coletiva e não relações internacionais. Os palestinos alcançarão sua liberdade, eventualmente, porque se mantêm comprometidos com uma trajetória de ideias, memórias e aspirações comuns de longuíssima data, que costuma se traduzir ora na espiritualidade ou cultura, ou ainda, uma fé profunda e intransponível que cresce mais e mais forte — mesmo nos tempos horríveis de guerra e genocídio.

Protesto em solidariedade a Palestina e Líbano, sob ataques de Israel, na Times Square, em Nova York, Estados Unidos, em 5 de outubro de 2024 [Fatih Aktas/Anadolu via Getty Images]

Em entrevista que realizei com o professor Richard Falk, em 2020, o professor e ex-relator especial das Nações Unidas, resumiu a luta na Palestina histórica como uma guerra entre aqueles que têm armas e aqueles que têm legitimidade. De acordo com Falk, no contexto dos movimentos de libertação nacional, há dois tipos de guerra: a guerra factual, com os soldados em campo, carregando armas, e a guerra de legitimidade. Quem vence a última é quem, em último caso, prevalecerá.

É verdade, os palestinos “olham para tudo com uma perspectiva ampla, de longo prazo”. Que eu concorde com Morris pode ser estranho, afinal, as sociedades costumam avançar por meio de lutas de classe e agendas socioeconômicas, em vez de uma visão unívoca ou coletiva de longo prazo.

É aqui que a “longue durée” se torna ainda mais relevante no caso palestino. Mesmo que os palestinos não tivessem chegado a um consenso tácito de esperar que seus invasores vão embora, e que a Palestina se torne, mais outra vez, um espaço de coexistência racial, religiosa e societária, são motivados — subconscientemente ou não — pela exata mesma energia que levou seus ancestrais a lutar contra a injustiça em todas as suas formas.

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Enquanto muitos políticos e acadêmicos ocidentais se ocupam de culpar as vítimas — os palestinos — por sua própria opressão, a sociedade palestina continua a evoluir baseada em uma dinâmica inteiramente independente. Por exemplo, na Palestina, os conceitos de sumud, ou resiliência, têm raízes profundas na cultura e pouco se submetem a estímulos externos, como a política ou a academia.

Trata-se de uma cultura tão longeva quanto o tempo — inata, intuitiva, geracional.

A saga dos palestinos começou muito, muito antes da guerra; muito, muito antes de Israel ou mesmo do colonialismo moderno. Esta verdade mostra novamente que a história não avança apenas por meros eventos, mas outros fatores incomensuráveis; que, apesar de a “história dos eventos” — dos aspectos políticos militares e econômicos que contribuem a curto prazo — ter sua importância, a história de longa data é aquela que proporciona uma compreensão mais profunda do passado e de suas consequências.

Tamanha discussão pode engajar todos aqueles que se importam com a luta na Palestina e que se mostram cada vez mais ansiosos em apresentar sua versão da verdade, que não seja motivada por interesses políticos do presente e futuro, mas sim o entendimento do passado. Apenas então, poderemos começar a — vagarosamente — libertar a narrativa palestina de todas aquelas histórias convenientes que são impostas ao povo colonizado.

Não é tarefa fácil, porém inevitável, à medida que rompe com as fronteiras da linguagem sobreposta dos episódios históricos, das datas recorrentes, dos dados desumanizantes e da mais pura mentira.

Em último caso, deve estar nítido a qualquer pessoa inteligente que busque interpretar a história que, embora jatos de guerra e bombas que destroem quarteirões inteiros causem impacto imediato, a coragem, a fé e o amor comum é quem determinarão o longo prazo. É por isso que os palestinos seguem vencendo sua guerra de legitimidade; e é por isso que sua libertação é somente questão de tempo.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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Palestina: quatro mil anos de história
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