A maternidade e a criação dos filhos se tornaram elementos intensamente políticos do mundo árabe sobretudo a partir do século XIX. A forma como pensadores no Cairo ou em Beirute viam a democratização, o progresso técnico e econômico e o desenvolvimento civilizacional detinha em si um marcante aspecto de gênero. Este livro de Susanna Ferguson, em inglês, Labors of Love: Gender, Capitalism, and Democracy in Modern Arab Thought — em tradução livre, Os trabalhos do amor: Gênero, capitalismo e democracia no mundo árabe moderno — busca mapear os debates políticos por meio da evolução do conceito de tarbiya, que, no período pré-moderno, usufruía de uma definição menos rigorosa, comumente usado em contextos de um professor que cultiva ou oriente seus estudantes, transformado, no entanto, em uma noção de como as mães criam e educam suas crianças. Tarbiya se tornou uma noção exclusivamente feminina — algo que as mulheres fazem sobretudo em casa. A subjugação da mulher passou, com o tempo, a ser um imperativo econômico, político e social dentro do mundo árabe. É deste modo que esta pesquisa aborda desde a história da intelectualidade, entre 1850 e 1939, a como a concepção de tarbiya se transformou na região.
Como argumenta a autora: “A história da tarbiya no Mediterrâneo Oriental é parte de uma narrativa muito maior. Entre os séculos XIX e XX, comunidades de todo o mundo se depararam com a ascensão das sociedades capitalistas, das temporalidades progressistas e dos modelos modernos de soberania popular, constitucionalismo e governança democrática como ideais políticos. Tais mudanças costumam ser compreendidas isoladas umas das outras, mas a história da tarbiya nos mostra um regime binário de gênero e sexo que reúne todas elas”.
A história da transformação do conceito começa fundamentalmente na década de 1850, quando as nações do Mediterrâneo Oriental começaram a se incorporar na nova economia global capitalista e as potências europeias passaram a avançar ao Oriente Médio. Um importante elemento que alterou a paisagem intelectual foi o papel crescente dos missionários católicos e protestantes nessas sociedades. A educação constituía parte essencial do projeto missionário; mulheres e meninas eram um alvo particularmente importante, sobretudo ao cultivá-las para serem mães e criar crianças. “Civilização queria dizer disseminar valores que garantissem que as mulheres proporcionassem lições morais necessárias para regenerar de dentro a sociedade”, nota a autora, ao descrever como os missionários conceberam seus próprios princípios e objetivos da educação feminina, O desenvolvimento político, econômico, social, moral e civilizacional se interligava à educação das mulheres, para que se tornassem boas mães e criassem bons filhos, pois, caso contrário, sem a “devida” educação, seriam a decadência de sua nação. O missionário protestante americano Henry De Forest (1814–1858) elucidou este ponto de vista em uma palestra realizada em Beirute, na qual “contrapôs as boas mães protestantes às mulheres deseducadas da Síria, cujas práticas para criar filhos culminariam no declínio moral e civilizacional”. A pressão para que fossem boas mães, cuja vida orbitaria no ambiente doméstico, passou a ser interconectado ao chamado bem-estar civilizacional e se tornou um jargão constante na emergente imprensa árabe.
RESENHA: Hoje, levaram meu filho: Curta ressalta o sofrimento das crianças palestinas
Embora homens árabes tenham sido centrais ao desenvolver este ideário, mulheres árabes bem instruídas repetiram o mantra. Ferguson detalha como escritoras e intelectuais árabes discutiram a tarbiya, ao associá-la a outros conceitos. Uma figura pioneira foi Hana Kurani, com origens no Monte Líbano, formada no Seminário para Moças de Beirute, uma instituição de missionários protestantes americanos, e que, posteriormente, viajou ela mesma aos Estados Unidos. Kurani escreveu artigos em árabe, publicou um livro sobre ética em 1891 e recebeu uma medalha imperial do sultão otomano. “Kurani defendia o papel único das mulheres em ordenar a vida social e insistia que a melhor ferramenta para moldar a sociedade era o trabalho sutil da formação do sujeito pela tarbiya, isto é, assumida pelas mulheres dentro de casa”. A geração de Kurani alimentou a ideia de que o “trabalho das mulheres”, não-remunerado — e, ainda assim, um alicerce às comunidades —, transcorria dentro de casa, em franco embate ao “trabalho dos homens”, do lado de fora. A maneira como as mulheres criavam as crianças passou a sofrer cada vez mais escrutínio pela imprensa. Um exemplo marcante era a amamentação — tradicionalmente, as mulheres poderiam usufruir de uma ama de leite para amamentar seus filhos, algo permissível pelo Islã; contudo, conforme novas concepções tomavam corpo, a amamentação de seio próprio passou a ser considerada uma virtude moral, enquanto a alternativa sofreria o estigma de uma “mãe ruim”, portanto, “ruim para a sociedade”.
Labors of Love oferece uma perspectiva inovadora e interessante sobre o gênero e os primórdios da modernidade árabe. Susanna Ferguson conta uma história ainda negligenciada pela academia, que permeia o mundo árabe contemporâneo. Entretanto, como bem observa, não sem pesar, não é uma história única do mundo árabe, mas sim parte de uma história em escala global. Embora pareça local, não se trata de uma narrativa excepcionalista ou que enxerga a questão como algo exótico, próprio dos povos árabes, suas comunidades e suas mulheres. O livro tem nuances. É uma pesquisa profunda, porém de fácil acesso. Labors of Love é uma intervenção importantíssima sobre a intelectualidade e a história social do mundo árabe — muito embora também útil e fascinante a historiadores e leitores de todo o globo.