A cidade de Aleppo e suas antigas fortificações foram capturadas por muitos invasores ao longo dos séculos, cada qual com suas próprias ideias e noções de governo.
Abu Muhammad al-Jolani, o mais recente desses conquistadores, pisou nas escadarias da cidadela de Aleppo cercado de apoiadores, com bandeiras da revolução síria em suas mãos, na quarta-feira, 27 de novembro de 2024.
O líder rebelde encabeçou um ataque surpresa contra as forças do regime sírio de Bashar al-Assad, que levou à captura da segunda maior cidade do país. Sua organização, o Hay’at Tahrir al-Sham (HTS), junto de aliados, desde então não pararam sua marcha, passando por Hama, Homs e enfim chegando à capital Damasco.
O HTS já tem alguma experiência em termos de governança, ao dominar a gestão oposicionista na província de Idlib, no noroeste da Síria, desde 2017. Seus poderes — e de fato a busca por ele — levaram tanto o HTS quanto Jolani a embarcarem em um processo de transformação ao longo da última década, embora muitos ainda questionem quão profunda é essa mudança.
Certa vez filiada à organização terrorista al-Qaeda e ao conceito de jihadismo transnacional, Jolani esmagou previamente adversários moderados e mesmo lutou ao lado do infame Estado Islâmico (Daesh). Hoje, no entanto, Jolani e sua poderosa facção armada reafirmam seu compromisso com a diversidade na Síria e prometem proteger as minorias a fim de projetar uma imagem de líderes nacionais.
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Este artigo olha para a ideologia do HTS e como sua ascensão na Síria pode transcorrer.
Ruptura com a jihad
O Hay’at Tahrir al-Sham, em português, Comitê de Libertação do Levante, se estabeleceu em janeiro de 2017 como uma fusão de diversas organizações políticas e militares da oposição síria, a maioria das quais sob uma forma de ideologia ultraconservadora e ainda jihadista.
Em seu âmago, o HTS é uma reformulação de marca do Jabhat al-Nusra, também conhecido como Frente de Nusra, um grupo rebelde linha-dura fundado por Jolani em 2012 em oposição à ditadura de Assad, com intuito de converter a Síria em uma espécie de califado sunita.
Em seus primórdios, o Nusra coordenou esforços com um grupo iraquiano que viria a ser conhecido como Estado Islâmico — ou, do acrônimo em árabe, Daesh. Não obstante, em 2013, fez juras de aliança à al-Qaeda, tornando-se inimigo e adversário direto da organização terrorista iraquiana. Com o tempo, a al-Qaeda e o Nusra começaram a divergir e Jolani passou a se distanciar do jihadismo transnacional do grupo originário, ao expressar anseio em angariar legitimidade internacional.
O Nusra rompeu oficialmente com a al-Qaeda no ano de 2016, ao se rebatizar como Jabhat Fatah al-Sham, e expurgar pouco a pouco elementos comprometidos em realizar atentados fora da Síria.
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Segundo Aymenn Jawad al-Tamimi, especialistas nos grupos mais conservadores que operam na arena da Síria, “o HTS é uma organização salafista com orientações nacionais [que] não está buscando formar um califado, como é o caso do Daesh ou da al-Qaeda”. Tamini explicou que estes, ao contrário do HTS contemporâneo, simplesmente negam o conceito de Estado-nação.
De fato, o Hay’at Tahrir al-Sham, em vários momentos, travou batalhas contra o Daesh, assim como contra o Hurras al-Din, sucursal da al-Qaeda que se separou do movimento de Jolani quando este demonstrou um viés mais moderado. Ainda assim, o HTS é hoje listado como grupo terrorista por Estados Unidos e Grã-Bretanha.
Ideologia salafista
A administração da província rebelde de Idlib, autodenominada Governo de Salvação da Síria, é dominada pelo HTS. O grupo recorreu a seus princípios salafistas para estabelecer uma série de políticas sociais de caráter ultraconservador.
“O Governo de Salvação da Síria detém normas sociais conservadoras”, disse Tamimi. “Embora não imponha as vestimentas às mulheres, sugerem o véu”.
Jerome Drevon, especialista nos movimentos armados na Síria, afirmou ser importante observar as práticas hoje em voga na província. “Idlib tem, sim, fortes normas religiosas. Mas as pessoas são relativamente conservadoras independente do que diz ou faz o HTS”.
Segundo Drevon, nos anos recentes, no entanto, é possível ver encontro de gênero nos shopping centers e restaurantes, algo proibido sob outros governos de oposição estabelecidos previamente no noroeste da Síria. O Governo de Salvação ainda impõe, contudo, a separação de gênero nas escolas.
Segundo pesquisadores, o HTS tem buscado se distanciar das normas mais rígidas de governança islâmica, associadas a versões prévias de sua organização, incluindo punições como açoite e apedrejamento.
Jolani já declarou: “A governança deve ser consistente com a sharia islâmica, mas não de acordo com o que diz o Daesh ou mesmo a Arábia Saudita”.
Sua organização, entretanto, ainda age sobre incidentes que considera transgredir sua interpretação da lei islâmica. Um exemplo ocorreu em agosto, quando um evento relacionado aos Jogos Paralímpicos de Paris, organizado pela comunidade de pessoas com deficiência em Idlib, teve suas portas fechadas pelo Governo de Salvação. Na ocasião, conforme juristas religiosos, os atos apresentados nas cerimônias conduzidas em Paris, incluindo a abertura, seriam associados a “crenças pagãs”.
A ação foi certamente condenada por grupos de direitos humanos e que lutam por democracia. A Rede Síria para Direitos Humanos, por exemplo, destacou que a medida perpetua “políticas restritivas” do chamado Governo de Salvação Nacional contra iniciativas humanitárias.
Tratamento das minorias
Desde que deflagrou sua mais recente ofensiva, o HTS tem repetido o mantra de que protegerá minorias religiosas e étnicas sob sua égide.
“Na Síria do futuro, creio que a diversidade é nossa força e não nossa fraqueza”, insistiu Jolani na última semana. Suas declarações recentes abordam, em particular, a proteção às comunidades curdas e cristão em Aleppo.
O Nusra, contudo, tinha um histórico de acusações de gravíssimas violações de direitos humanos contra minorias. Conforme recorda Tamimi, “o Jabat al-Nusra forçou membros da comunidade drusa na Síria a se converterem ao sunismo. O HTS não desistiu dessa política, tampouco disse que os drusos que poderiam voltar a praticar sua própria religião”.
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Em junho de 2015, ao menos 20 membros da comunidade drusa foram mortos por combatentes do Nusra, em um massacre que Jolani descreveu como “erro” perpetrado por um comandante à revelia. Dois anos depois, Jolani visitou a área de Jabal al-Summaq — cujos habitantes são, em maioria drusos —, a fim de atenuar as apreensões da comunidade. Em seguida, devolveu casas previamente expropriadas de famílias drusas.
Jolani fez recuos similares em relação aos cristãos, como é o caso da devolução de casas na província de Idlib.
“O HTS, nos anos recentes, abriu suas portas e mesmo organizou encontros com as comunidades drusa e cristã”, notou Drevon. “Alguns cristãos tinham visto suas residências tomadas por refugiados de outros lugares da Síria, mas o HTS começou a ajudá-los a retomar algumas dessas casas”.
Apesar da aproximação com as minorias religiosas, ativistas de direitos humanos alertam que a discriminação continua, por ações do governo do HTS. Considerando o grande número de cristão em Aleppo — estimados em 25 mil pessoas — há uma renovada preocupação sobre o tratamento do grupo para com a comunidade. Drevon confirma que todos os olhos estão agora sobre o HTS e que, portanto, “serão devidamente julgados” por suas ações.
“Ser mais aberto às minorias religiosas é uma forma de mandar uma mensagem positiva a comunidades na Síria e no exterior”, insistiu Drevon.
O HTS reiterou na última semana que os curdos — cerca de cem mil apenas em Aleppo — são também “parte integral da diversidade da identidade síria”. De fato, muitos curdos guardam, hoje, maiores temores sobre o Exército Nacional da Síria (ESN), uma coalizão com apoio da Turquia, que vem lutando lado a lado com o HTS e que aproveitou o momento para avançar em terras curdas na última semana.
‘Hegemonia faccionária’
Embora o Governo de Salvação em Idlib tenha delegado alguns assuntos de governança a instituições locais e mesmo entidades humanitárias estrangeiras, como saúde e educação, mantém controle sobre a segurança e a economia.
A liberdade de expressão permanece severamente restrita pelo HTS, com prisões arbitrárias e repressão violenta ainda utilizada sobre vozes dissidentes.
“Não, o HTS não acredita em democracia”, observou Tamimi. “Trata-se de uma abordagem hegemônica e faccionária, na qual outras facções devem aceitá-lo como líder”.
Para Tamimi é ainda improvável que o HTS deseje compartilhar poderes, acostumado a um sistema autoritário posto em prática no noroeste da Síria. “Não acho que este modelo de governança deva mudar. O HTS fez um cálculo segundo o qual essa forma de governo ajuda a preservar a lei e a ordem e um sentimento de estabilidade”.
Drevon notou que as sociedades nas províncias de Aleppo e Hama são bastante diferentes de Idlib e que a governança do HTS dependerá de um estilo mais inclusivo de gestão pública, com envolvimento de grupos distintos. “Eles dizem que estão prontos para isso. Mas é algo que será testado na prática”.
Drevon reiterou que Hama e Aleppo são cidades grandes, onde presença do HTS até então era marginal. “O HTS não tem meios de governar sozinhos”, comentou o especialista. “Não resta mais alternativa senão compartilha poder e fazer concessões às administrações e comunidades locais”.
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