“Eu e Reham acreditamos nos sonhos, acreditamos no amor … Nós nos apegamos a isso”, diz Abdallah Hassan Abdou, suavemente, como se tentasse convencer a si mesmo mais do que seus interlocutores.
Sentado em uma tenda improvisada no sul de Gaza, Abdallah, dentista de 31 anos, reflete sobre um futuro que, por ora, fora de alcance. Apenas um ano atrás, ele e sua noiva contavam os dias para seu casamento. Ambos haviam planejado cada mínimo detalhe — o lugar, o vestido, o terno e a gravata, a lista de convidados. A data marcada para comemorar o início de sua vida juntos seria 20 de outubro de 2023.
Quando as bombas israelenses começaram a chover sobre Gaza, porém, seus planos foram esmigalhados. Em vez de festa, viram-se desolados, separados por uma guerra que devastou seu mundo.
Nascido e criado no bairro de Tel al-Hawa, aninhado logo ao sul da Cidade de Gaza, Abdallah sempre carregou um senso de dever para com sua comunidade. Após conquistar seu diploma em odontologia, no Egito, retornou a Gaza para abrir uma clínica no abarrotado campo de refugiados de Shati, a fim de conceder cuidados a preços acessíveis, de alta qualidade, a pessoas que lutam para sobreviver.
Por seis anos, dedicou-se a esta tarefa, enquanto tentava poupar dinheiro para construir um futuro com Reham. Agora, tanto sua clínica quanto a casa que planejavam compartilhar foram reduzidas a escombros. Abdallah foi deslocado ao sul do enclave; no entanto, apartado de Reham, que permanece no norte.
A guerra começou onde morávamos, em Tel al-Hawa, onde construímos nossa casa tijolo por tijolo, colocando nosso amor e nossas esperanças em cada um de seus detalhes. Dentro de instantes, contudo, nos primeiros dias da guerra, tanques israelenses destruíram tudo — minha clínica também! Soldados invadiram a clínica e destruíram todo o equipamento.
Agora, tudo está perdido. Recebemos um alerta das forças israelenses nos ameaçando para que deixássemos nossa casa. Minha família decidiu fugir ao sul, mas minha alma gêmea, Reham, ficou com sua família, presa no norte.
Desde então, não se viram mais. A vida como deslocados à força os privou dos elementos mais singelos do cotidiano. Abdallah detalha uma rotina infindável de dificuldades — horas e horas nas filas por um pouco de pão; a luta para encontrar água limpa; os esforços quase hercúleos para carregar seus celulares ou computadores em estações improvisadas de energia solar. Os refugiados, continua o dentista, são forçados a racionar farinha fora da validade, abrigados hoje, com dezenas de famílias, em um espaço superlotado, em uma pequena escola do jardim de infância.
Manter contato com Reham é dificílimo e de partir o coração. Os apagões comunicacionais e os sinais cada vez mais escassos de internet deixaram ambos isolados e ansiosos, temendo o pior. “Por vezes, durante os bombardeios, tento consolá-la com minhas palavras, mas é difícil achar as palavras certas. Mesmo palavras reconfortantes parecem vazias, porque temos de dizê-las toda hora”.
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Quando os bombardeios se intensificam de madrugada, os temores de Reham aumentam. “Falamos de saudade e de quanto queremos estar juntos. Apesar de tudo, fazemos ainda nossas juras de amor, mesmo que tenha de ser através da dor, das dificuldades diárias que nunca terminam”.
Recursos são escassos e os preços não param de subir. Contudo, muitos no sul de Gaza se consideram “sortudos” comparados ao norte, onde as condições são ainda mais aterradoras. No norte, quase não há comida. “Às vezes tenho uma refeição simples aqui”, lamenta baixinho o noivo, “quem sabe, alguns vegetais, mas imagino Reham sem nenhuma comida — é um pensamento doloroso”.
Segundo um comitê de especialistas globais em segurança alimentar, a crise de fome é “iminente” no norte de Gaza, à medida que Israel mantém sua ofensiva. Segundo o Comitê de Monitoramento da Fome, órgão independente, “ações imediatas — dentro de dias e não semanas — é vital por todos os agentes envolvidos no conflito, ou que influenciam sua conduta, para evitar ou atenuar uma catástrofe”. Os peritos advertiram ainda que “a fome, a desnutrição e a morte por desnutrição e doença rapidamente crescem” e que os “limiares da fome já foram cruzados ou serão em breve”.
O Escritório das Nações Unidas para Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) estima que há em torno de 75 mil e 95 mil pessoas ainda presas no norte de Gaza.
Ninguém consegue entender ou esperar tudo isso, é muito além do que poderíamos imaginar. Essa guerra é como viver em um pesadelo sem fim
“Dessas tragédias que testemunhamos”, acrescentou Abdullah, “uma me veem imediatamente à mente: meu primo, Anas Mahani, foi gravemente ferido por um estilhaço de bomba, que penetrou em sua traqueia, deixando-o com enormes dificuldades para falar e mesmo respirar”.
Para nós, jovens, a pior parte é a incerteza. Não sabemos se vamos sobreviver, se vamos ver nossos entes queridos novamente. Não tenho como falar com Reham e vice-versa. A guarra não nos separou somente fisicamente, mas acabou com nossos sonhos. Começamos a planejar nosso futuro juntos; ela sonhava em concluir seu mestrado em administração; eu esperava continuar a crescer como dentista, ganhando experiência e novos cursos.
Abdullah pausa: “Mas agora, não consigo trabalhar por mais de um ano”. Em Deir al-Balah, não restam quase clínicas de odontologia e os suprimentos são tão escassos que mesmo trabalhar como voluntário tem seus limites. Ainda assim, juntou-se a uma pequena equipe de voluntários para oferecer cuidados aos deslocados.
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Com os poucos recursos que temos, oferecemos serviços básico, como extrações, canais e tratamentos para as crianças — o mínimo que conseguimos fazer. É a forma que encontramos permitir que as pessoas sorriem e tenham alguma esperança. Essa é minha forma de ajudar.
Com um sorriso tênue, acrescentou: “Não é como trabalhar em uma clínica, mas é alguma coisa”. O trabalho não é fácil. Os pacientes costumam ser crianças que sofrem de infecções que não foram tratadas e, por vezes, não tem muito o que fazer senão dar conselhos e administrar a dor.
Abdallah encontra um fio de esperança em seu trabalho, mesmo que sinta o peso de tudo aquilo que perdeu. Quinze membros de sua família expandida foram assassinados por Israel, incluindo a família inteira do irmão de sua noiva — mortos em um único bombardeio. As perdas vão além de sua família: mais de 60 dentistas — muitos amigos próximos — também foram mortos. Para Abdullah, cada vida perdida é como se seu mundo escapasse por entre os dedos. Ainda assim, continua a cuidar dos outros, determinado a participar dos esforços para manter seus sonhos vivos.
Sua voz treme ao recordar o rosto de cada uma das vítimas, de cada uma de suas histórias. Algumas eram crianças que jamais conheceram a vida além das fronteiras de Gaza; outras eram idosos que sofreram com os conflitos prévios, mas que jamais perderam sua esperança. Seus primos mais jovens sonhavam em estudar no exterior; seu tio esperava ampliar seu pequeno negócio. Eram pessoas como Abdullah, que tinham sonhos para além do conflito, cujas vidas foram ceifados em um único instante.
Ao refletir sobre tudo que perdeu — sua casa, sua clínica, seus amigos —, Abdullah mantém as esperanças no sonho e no amor, por mais frágeis que possam ser. Abdullah se apega à ideia de que, um dia, ele e Reham estarão juntos novamente. Juntos, reconstruirão não apenas suas vidas, mas sua comunidade, ao tentar curar as feridas daqueles que foram desolados pelo genocídio.
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