Há um ano, em 29 de janeiro de 2024, segunda-feira, a Sociedade do Crescente Vermelho da Palestina recebeu um trágico telefonema de três horas, divulgado mais tarde, que registrou a morte da menina palestina, Hind Rajab, de então seis anos de idade, na Faixa de Gaza sitiada.
Rajab tentava desesperadamente contactar os socorristas em meio a ataques de tropas israelenses que impediam o acesso de ambulâncias no local, em torno do veículo onde estava parte de sua família.
“Hind não parava de nos pedir para irmos buscá-la, para enviar alguém para buscá-la”, lembrou, comovida, a telefonista Rana al-Faqeh, à agência de notícias Reuters. Segundo al-Faqeh, as equipes de resgate “se sentiram paralisadas”.
“Eu disse a Hind para fechar os olhos e fingir que estava brincando de esconde-esconde, caso anoitecesse e não conseguíssemos enviar ajuda. Para fechar os olhos e começar a contar”. Contudo, através da linha, ouviu tiros.
Quatro horas após a primeira chamada, o Crescente Vermelho recebeu permissão do exército israelense para enviar uma ambulância. Logo, todavia, perdeu contato, tanto com os dois paramédicos a bordo quanto com Rajab.
A primeira pessoa a falar com o Crescente Vermelho foi Layan Hamadeh, prima de 15 anos de Rajab, presa no mesmo veículo, que passava perto de um posto de gasolina nos arredores da Cidade de Gaza, quando tanques e tropas da ocupação se aproximaram.
A família tentava fugir em dois grupos — um a pé, outro no veículo — do bairro de Tel Al Hawa, sob avanços coloniais. Poucos minutos após partir, a somente 350 metros do ponto de início, o carro foi atingido por disparos.
A pé, a mãe de Rajab, Wissam Hamada, testemunhou o ataque, mas não conseguiu compreender, a princípio, que o carro de sua filha havia sido o alvo.
Quando Hamadeh conseguiu telefonar, revelou que todos lá dentro estavam “dormindo” e que ela e Rajab haviam sido feridas. “Estão atirando em nós. Tem um tanque [de guerra] perto de mim”, afirmou Hamadeh em um dos áudios divulgados. Então, uma série de disparos.
Hamadeh e cinco outros membros da família foram mortos, reportou o Crescente Vermelho. A única sobrevivente, Rajab, continuou na linha, junto de al-Faqeh e de um psicólogo especializado que tentava acalmá-la à espera de socorro.
O destino de Rajab permaneceu desconhecido por 12 dias, quando, em 10 de fevereiro, familiares conseguiram enfim chegar ao veículo, após a retirada das tropas israelenses, para encontrar todos os passageiros mortos.
Nos 15 meses de genocídio israelense em Gaza, agora sob cessar-fogo desde domingo, 19 de janeiro de 2025, equipes de resgate palestinas enfrentaram dilemas impossíveis, sob intensos bombardeios, ataques diretos, restrições de movimento e frequentes blecautes comunicacionais.
“A história de Hind e Layan é uma das centenas dentre as chamadas que as nossas equipes receberam diariamente”, comentou Nebal Farsakh, porta-voz do Crescente Vermelho. “Em muitos casos, não conseguimos ajudar porque a ocupação israelense, onde quer que tenha seus tanques, declara toda a área como uma zona militar, apesar da presença clara de civis”.
Imagens de satélite, análises forenses e entrevistas, compiladas por uma reportagem investigativa da rede Sky News, confirmaram que os disparos israelenses ao veículo da família, assim como às ambulâncias, foram deliberados.
O exército da ocupação israelense negou, a princípio, qualquer envolvimento no caso, ao remover de suas redes um comunicado à imprensa que confirmava sua presença em Tel Al Hawa no momento do ataque.
As imagens de satélite, porém, desmentiram as alegações. Uma investigação mais aprofundada revelou ainda que tanto o carro da família quanto a ambulância foram atingidos por balas de alto calibre.
Os danos à ambulância, encontrada carbonizada dias depois, indicaram um disparo de tanque de guerra, para além do carro da família cravado de balas, sobretudo do lado direito, dos passageiros.
Legado e repercussão
Os ataques israelenses a Gaza deixaram mais de 47 mil mortos, 111 mil feridos e dois milhões de desabrigados. Entre as fatalidades, mais de 17.500 são crianças, para além de 11 mil desaparecidos sob os escombros.
Em janeiro de 2024, o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), sediado em Haia, acatou a denúncia sul-africana por genocídio contra o Estado israelense, registrada em dezembro do ano anterior.
Em novembro de 2024, o Tribunal Penal Internacional (TPI) — corte-irmã, que julga indivíduos —emitiu mandados de prisão contra o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, e seu ex-ministro da Defesa, Yoav Gallant, por crimes de guerra e lesa-humanidade cometidos em Gaza.
Neste contexto, a Fundação Hind Rajab (HRF) surgiu em Bruxelas, em setembro de 2024, com o intuito de compilar informações de soldados de Israel a partir de suas próprias redes sociais, nas quais compartilham provas de seus crimes.
A fundação registrou ao menos 28 processos em oito países diferentes, contra soldados de Israel, levando o regime colonial a auxiliar na fuga de cinco países estrangeiros, em potencial violação de termos diplomáticos e soberania.
No Brasil, os esforços da HRF levaram à abertura de um inquérito, incluindo pedido de prisão preventiva, sob determinação do Ministério Público, contra Yuval Vagdani, soldado israelense de férias na Bahia.
Vagdani fugiu em 5 de janeiro à Argentina, onde também foi denunciado.
As denúncia contra soldados da ocupação apontam para participação destes em demolições em massa de residências civis em Gaza, durante a campanha sistemática de extermínio da população palestina, desde outubro de 2023.
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Evidências incluem gravações em vídeos, dados de geolocalização e fotografias nas quais suspeitos — como Vagdani — plantam explosivos em bairros civis ou anunciam dolo, ao pedir, por exemplo, “que se esmague este lugar imundo”.
O inquérito brasileiro — realizado agora in absentia — representa a primeira vez que um país signatário do Estatuto de Roma aplica diretamente disposições legais, sem determinação direta, do Tribunal Penal Internacional.
Os esforços da fundação — batizada em homenagem à menina, vítima do genocídio — seguem internacionalmente, para pressionar criminosos de guerra, isolar o Estado ocupante e incorrer em novos mandados de prisão emitidos por Haia e seus países-membros.
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