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Coletivo de artistas gera polêmica por cobrir ‘evidências’ em prisão na Síria

1 de fevereiro de 2025, às 06h00

Coletivo Sawaaed Al-Khair pinta bandeira revolucionária da Síria nas paredes de uma prisão em Latakia, na Síria [X/Reprodução]

Um coletivo na Síria gerou indignação nesta semana ao deixar pinturas e grafites sobre as paredes de um presídio do país, ao incitar acusações de encobrir a história e evidências em potencial de violações de direitos humanos contra os ex-prisioneiros, cometidas pelo regime deposto de Bashar al-Assad.

O grupo Sawaaed Al-Khair — ou Braços da Boa Vontade — postou um vídeo de alguns de seus membros cobrindo as paredes da Diretoria de Segurança em Latakia com bandeiras da revolução e mensagens de suposta esperança. Seu líder — ao que parece — é Yazan Fwity, que foi apresentador de um canal de televisão financiada pelo antigo regime.

Usuários nas redes sociais condenaram o ato, incluindo sírios e ativistas que acusaram o coletivo de desrespeitar a memória daqueles aprisionados e mortos e incorrer em ações que, na prática, apagam possíveis provas de crimes de guerra e lesa-humanidade.

“Essa iniciativa poderia ser mais estúpida? Mais desrespeitosa? Apagar as memórias da prisão de alguém de uma parede não é algo que devemos comemorar. É uma das piores coisas que se pode fazer contra aqueles que sofreram nos calabouços de Assad”, reagiu um usuário das redes sociais.

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Prisões e centros de detenção foram cruciais ao aparato repressivo do governo de Assad, usados para suprimir a dissidência e conhecidos por seu uso generalizado e sistemático de tortura física e psicológica, violência sexual, maus tratos e execuções em massa.

Mais de 130 mil pessoas foram detidas ou desapareceram ao longo dos anos.

Após a queda de Assad em 8 de dezembro, fotos e vídeos de dentro das prisões tomaram as redes sociais, revelando que muitos dos prisioneiros usaram as paredes das celas para registrar suas experiências, expressar sua dor e gravar seus nomes e telefones de alguns de seus parentes.

Para os sírios — muitos dos quais ainda estão à procura de informações sobre familiares desaparecidos —, tais registros seriam evidência em potencial para o processo há muito esperado de justiça de transição.

“O que aconteceu é um verdadeiro crime contra os prisioneiros e mártires e apagamento da história e das provas que condenam o regime”, destacou um usuário nas redes sociais. “Este comportamento não pode ser tolerado e é preciso responsabilizar quem quer que contribua em obscurecer os fatos e em brincar com a dor das pessoas para obter ganhos pessoais ou políticos e exonerar os criminosos”.

Outro cidadão alertou: “As prisões, os centros de detenção e as repartições de segurança do Estado não são um playground para obter likes nas redes sociais”.

A indignação online levou o coletivo a deletar o vídeo e insistir que não pintou nada sobre as paredes das celas, mas apenas na sala de espera. O grupo apontou ainda que obteve autorização de segurança do aparato atual para sua iniciativa.

Mais tarde, no entanto, o coletivo apagou todas as suas páginas nas redes sociais.

Ativistas, contudo, pouco cederam e continuaram a expressar seu descontentamento, ao pedir que os responsáveis por permitir a ação fossem identificados.

A ativista síria Celine Kasem disse crer que as pessoas envolvidas, incluindo quem deferiu a ação, estavam absolutamente cientes das implicações do que estavam fazendo. “Estou enfurecida”, enfatizou Kasem. “Essas pessoas não são idiotas, sabiam muito bem o que estavam fazendo. Algumas delas chegaram a servir de porta-voz do regime. É lógica que lhes falta? Ou foi intencional? Exigimos que essas pessoas e aqueles que permitiram que fizessem isso sejam responsabilizados por mais este crime”.

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Muitos sírios estão reivindicando agora medidas mais rigorosas de segurança nas prisões.

“É um ato infeliz, egoísta e irresponsável”, disse um cidadão sírio. “As autoridades legais devem consideras medidas sérias para preservar os calabouços, carregados de histórias de partir o coração, daquele regime brutal que enfim caiu”.

“Por que é que o prédio não tinha segurança ou ao menos um alerta no portão”, perguntou outro usuário. “É uma loucura. É irresponsável. Francamente, prendam todos eles”.

Emnota, a Rede Síria para Direitos Humanos (SNHR) pediu que as autoridades do governo interino investiguem o coletivo Sawaaed al-Khair por potencialmente “adulterar cenas de crimes”, além de adotar medidas para evitar acesso não-autorizado às prisões.

“Este comportamento irresponsável é uma ameaça direta aos esforços para documentar violações que acreditamos terem ocorrido nessa instalação, para determinar o destino de prisioneiros mantidos ali e responsabilizar todos aqueles envolvidos em tortura”, declarou o tradicional grupo de direitos humanos.

A rede Middle East Eye, que produziu esta reportagem, tentou contactar Yazan Fwity para que comentasse o incidente — contudo, não obteve resposta.

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Este artigo foi publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye, em 20 de janeiro de 2025