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Gaza: água se torna mais uma arma de guerra

Com corte de eletricidade e bloqueio da entrada de combustível de Israel, crise hídrica deixa população palestina em condições desumanas e vulnerável a doenças infecciosas

29 de março de 2025, às 14h52

Palestinos, incluindo crianças, reúnem-se em torno de um caminhão-tanque para coletar água limpa em meio aos ataques israelenses em andamento.Gazae o encerramento contínuo de passagens de fronteira, que limitaram severamente o acesso às necessidades básicas em Khan Yunis,Gazaem 29 de março de 2025. [Abed Rahim Khatib/Agência Anadolu]

Em meio a um cessar-fogo rompido e mais mortes em Gaza, na Palestina, outra tática de guerra está sendo utilizada. Autoridades israelenses estão essencialmente bloqueando o acesso à água da população, por meio do corte de eletricidade e do bloqueio da entrada de combustível no território.

Enquanto as forças israelenses continuam a bombardear a Faixa de Gaza, MSF pede que o cessar-fogo seja imediatamente restaurado e que as autoridades israelenses permitam o fluxo de eletricidade, juntamente com a entrada da ajuda humanitária, incluindo combustível e suprimentos de água e saneamento, para evitar a perda de ainda mais vidas.

“Com um novo ataque de bombardeios que matou centenas de pessoas em apenas alguns dias, as forças israelenses continuam a privar a população em Gaza de água, cortando a eletricidade e impedindo a entrada de combustível – recursos necessários para a infraestrutura hídrica, incluindo o funcionamento de bombas de água”, explica Paula Navarro, coordenadora de atividades de água e saneamento de MSF em Gaza.

“Para aqueles que têm suportado bombardeios implacáveis, o sofrimento é agravado por uma crise hídrica – muitos são forçados a beber água imprópria, enquanto outros não dispõem da quantidade suficiente”, completa Navarro.

Família palestina deslocada em um veículo tuktuk; voltando para se estabelecer na cidade de Beit Lahia, ao norte da Faixa de Gaza. © Nour Alsaqqa/MSF

Em meio à violência, se o combustível acabar, o sistema de água remanescente entrará em colapso total e praticamente interromperá o acesso da população à água, levando a consequências desumanas para milhões de pessoas que permanecem em Gaza.

Condições de saúde agravadas
Além dos ferimentos e das mortes decorrentes dos conflitos e bombardeios, o acesso à água potável está tendo consequências sobre as condições de vida e a saúde das pessoas. Nos centros de saúde primária de Al Mawasi e Khan Younis, as três doenças mais comuns tratadas por MSF – icterícia, diarreia e sarna – são causadas diretamente pelo fornecimento inadequado de água potável.

O grande número de crianças com doenças de pele é um resultado direto da destruição e do bloqueio de Gaza.”
– Chiara Lodi, coordenadora da equipe médica de MSF em Gaza

“Além de tratar adultos e crianças com graves ferimentos de guerra, nossa equipe está atendendo a um número cada vez maior de crianças com doenças de pele totalmente evitáveis, como a sarna, que não é apenas desconfortável, mas, em casos graves, faz com que cocem a pele até sangrar, o que pode levar à infecção. Isso é resultado do fato de as crianças não poderem tomar banho, o que dissemina a sarna e outras infecções, deixando cicatrizes duradouras”, relata Chiara Lodi, coordenadora da equipe médica de MSF em Gaza.

Mulher mostra a condição da pele de seu filho, no centro de saúde primária de Attar, onde MSF oferece cuidados essenciais à população palestina em Khan Younis. © Nour Alsaqqa/MSF

Bloqueio da entrada de ajuda humanitária
Mesmo antes dos ataques com mísseis das forças israelenses, que romperam o cessar-fogo de dois meses, Israel havia bloqueado toda a entrada de ajuda humanitária em Gaza. Como resultado, os esforços para restaurar o sistema de água de Gaza continuam severamente obstruídos e atrasados pelo sistema de pré-autorização dos chamados artigos de “uso duplo” das autoridades israelenses.

A maioria dos suprimentos de água e saneamento exige pré-aprovação, incluindo cloro, peças sobressalentes essenciais para unidades de dessalinização de água, geradores, bombas de poço e tanques de água.

As restrições impostas pelas autoridades israelenses tornaram quase impossível a restauração de um sistema de água em funcionamento.”
Paula Navarro, coordenadora de atividades de água e saneamento de MSF em Gaza

“A produção de água depende de energia, mas não é permitida a entrada de novos geradores com mais de 30 quilowatts. Somos forçados a improvisar com os geradores – aproveitando peças de um para consertar outro”, completa Navarro.

MSF continua a pedir às autoridades israelenses que cessem o cerco desumano a Gaza, que respeitem o direito internacional humanitário e suas responsabilidades como potência ocupante, e que garantam o acesso imediato e desimpedido de ajuda à Faixa de Gaza.

Engenheiros de água e saneamento de MSF avaliando as tubulações hídricas na cidade de Beit Lahia, ao norte da Faixa de Gaza. © Nour Alsaqqa/MSF

Visão geral da crise hídrica em Gaza

• Mesmo antes dos recentes ataques, a crise hídrica em Gaza – que já era terrível devido aos cortes israelenses de eletricidade e de água e à destruição da infraestrutura – piorou depois que as autoridades israelenses impediram a entrada de ajuda em Gaza em 2 de março e, em 9 de março, cortaram a eletricidade. A principal usina de dessalinização em Khan Younis reduziu a produção de 17 milhões para 2,5 milhões de litros por dia.

• De janeiro a fevereiro de 2025, as equipes de MSF realizaram mais de 82 mil consultas de saúde primária, quase um quinto delas relacionadas a condições ligadas à falta de água e higiene, incluindo infecções no couro cabeludo e doenças de pele, como a sarna.

Abed al Raheem, pediatra de MSF, examina uma criança na clínica de saúde primária de Mawasi Rafah, ao sul da Faixa de Gaza. © Nour Alsaqqa/MSF

• Entre janeiro e meados de março de 2025, MSF produziu mais de 2 milhões de litros de água limpa e distribuiu mais de 36 milhões de litros. MSF iniciou a distribuição no norte de Gaza desde o cessar-fogo, incluindo no acampamento de Jabalia, onde a ajuda foi bloqueada por meses.

• De janeiro de 2024 até o início de março de 2025, dos 1.700 itens de água e saneamento solicitados por MSF sob o sistema dos chamados artigos de “uso duplo”, apenas 28% foram aprovados pelas autoridades israelenses. Muitos produtos estão em um limbo burocrático, com respostas das autoridades em uma média de até 60 dias – algumas ultrapassando 200. Mesmo os suprimentos aprovados ainda podem ser recusados nas passagens de fronteira. Em novembro de 2024, as autoridades israelenses aprovaram uma unidade de dessalinização de MSF após uma espera de 85 dias. No entanto, apesar das tentativas semanais desde 5 de fevereiro, a unidade ainda não entrou em Gaza, pois os caminhões que a transportam continuam a ser recusados na fronteira.

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Publicado originalmente em Médicos Sem Fronteiras – MSF